domingo, 22 de agosto de 2010

Comentário Sobre o Tempo



TUDO É IRREPETÍVEL!

Carpe Diem

Assisti “Sociedade dos poetas mortos” ainda criança, juntamente com meus irmãos, e fiquei encantado com a atmosfera poética e libertária do filme dirigido por Peter Weir. Depois o reassisti adulto, cursando letras pela Universidade Federal da Paraíba e com aspirações de ser poeta, quando pude compreender um pouco melhor a máxima latina “carpe diem”, que de alguma forma resume o sentido geral do drama.

Essa expressão significa “aproveite o dia” ou “goze a vida”, fazendo referência à fugacidade da existência humana e à conseqüente necessidade de vivenciá-la intensamente. Na história, os alunos de uma escola tradicional eram incentivados pelo professor John Keating (Robin Williams) a lutar pelos seus ideais e paixões, procurando fazer de suas vidas algo extraordinário.

É evidente que isso gerava conflitos com a escola e com os pais, notadamente por conta do conservadorismo então predominante. É o caso do personagem Neil Perry (Etham Hawke), cujo pai o impedia de se dedicar ao jornalismo literário e ao teatro, na tentativa de impor um caminho profissional mais convencional.

É nessa atmosfera de insurreição libertária que a obra se desenvolve, culminando em uma mensagem bonita a respeito da luta de cada ser humano contra as imposições sociais. O resumo da ópera seria o seguinte: se a vida é breve, todo instante importa e não deve ser desperdiçado com coisas menores.

Na época meus pais queriam que eu me transformasse em um advogado tradicional, com dedicação integral ao escritório da família, enquanto eu alimentava o sonho de ser professor de literatura rompendo com os padrões estabelecidos. Em vista disso, seria mesmo natural a minha identificação com o filme.

É possível afirmar que o ser humano é uma espécie de eterna procura pelo ponto de equilíbrio entre “o que eu quero fazer” e “o que querem que eu faça”. Trata-se de conflito que só pode ser solucionado a partir da percepção de que precisamos nos realizar e de que a única realização plausível é a busca pela felicidade.

Se a felicidade é fugidia, a sua procura talvez dure a eternidade – e isso, de alguma forma, nos alimenta e nos preenche. Tudo é irrepetível, sendo por isso que o momento presente é tão caro e tão raro.

“Mãos dadas”

O poema “Mãos Dadas”, publicado em 1940 por Carlos Drummond de Andrade – provavelmente, o maior nome da poesia moderna brasileira – no livro “Sentimento do mundo”, ilustra muito bem a necessidade de encontrar o tempo presente e de fazer dele a nossa tábua de salvação:

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.

O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,a vida presente.

Discernimento e Sabedoria

É verdade que desde os tempos mais antigos existem textos e tradições que fazem referência à brevidade da vida humana, com o intuito de estimular o seu pleno desfrute. Contudo, nem sempre tais mensagens destacam que o instante presente deve ser aproveitado com discernimento e sabedoria, o que a rigor pode até incentivar comportamentos inconseqüentes.

Se há quem defenda que o momento mal aproveitado é melhor do que o não aproveitado porque gera aprendizado, provavelmente ninguém discorda de que deve existir algum sentido maior nesse aproveitamento. É a propósito disso que eu transcrevo as últimas palavras do príncipe Sidarta, o Buda histórico, que foram repassadas oralmente até que a tradição Therevada as coletasse na obra “Tipitaka”:

Ó, monges! Estas são minhas últimas palavras. Tudo o que foi criado está sujeito à decadência e à morte. Tudo é impermanente. Trabalhem duro pela própria salvação com atenção plena, esforço e disciplina.

Eu e Meu Avô Naquela Tarde de Sábado

Era uma tarde de sábado ensolarada no bairro da Conceição, em Campina Grande, Paraíba. Meu avô paterno me esperava, porque eu tinha telefonado mais cedo avisando que passaria em sua casa.

Eu já me imaginava chegando a sua casa, de frente ao velho convento franciscano, e abrindo o portão de madeira que conduzia à rampa de entrada. Provavelmente, levaríamos horas conversando sobre futebol e política, seus assuntos favoritos, na saudável e afetuosa interação entre duas gerações tão distantes.

Todavia, antes de sair de casa recebo um telefonema de amigo, que me convida para ir a uma festa. Apesar de se tratar de uma festa qualquer, eu adiei o encontro com o meu avô em razão das cervejas e das namoradas que esperava achar.

É claro que eu não podia saber que dentro de poucos dias meu avô adoeceria e acabaria falecendo, de maneira que o nosso encontro jamais ocorreria. Com efeito, minha escolha não foi feita com discernimento e sabedoria naquela ocasião, porque não levou em consideração a idade avançada e a solidão dele.

De alguma forma, eu me sentia culpado por ter desmarcado o compromisso, e por não ter desfrutado mais de sua companhia. Porém, não havia mais nada a fazer, a não ser orar e aguardar o reencontro, que talvez ocorra em outro plano de existência.

“O Homem das Poucas Palavras”

Logo em seguida eu reproduzo a crônica com o título acima que escrevi a respeito do sonho que tive com o meu avô Nezinho, e que foi publicada no portal de notícias “Paraíba on line” (http://www.paraibaonline.com.br/). Esse texto deve ter sido escrito em 2000 ou 2001, salve engano:

Ontem à noite o meu avô paterno me apareceu em um intrigante sonho. Sentado no banco de uma praça, onde os jardins exibiam flores de todas as cores e tipos e os pássaros pousavam nas fontes para tomar água a um só tempo que os homens, ele me convidava para ficar ao seu lado. É que ele tinha partido sem me revelar uma importante mensagem, e somente por isso teve de voltar. Percebi que os seus olhos brilhavam intensamente e que uma estranha energia envolvia todo o seu corpo, o que me transmitiu uma sensação de felicidade. Como meu avô já estava passando muitos minutos em silêncio, eu insisti em saber o que ele tinha para me dizer. Após pensar um pouco ele pôs as mãos dele sobre a minha cabeça e começou a soletrar muito suavemente alguma coisa, como se estivesse fazendo uma oração, de modo que nada pude escutar. De repente, meu corpo esquentou e em poucos minutos eu senti que voava sobre o infinito. Essa sensação de liberdade do mesmo modo que me causou prazer me fez sentir medo, e por causa disso eu acordei assustado.

Deitado na cama, demorei a reparar que o meu quarto ainda estava banhado pela noite. Os meus pensamentos pareciam ter permanecido no banco daquela praça, como alguém que se perde no meio de um sonho. Nesse instante minha memória abriu as portas e eu comecei a rever passagens importantes ao lado de meu avô. Vi-o sentado na cadeira de balanço da sala de minha casa, enquanto eu e meus irmãos brincávamos com carrinhos de ferro sobre o tapete. Vi-o com certo constrangimento ao me explicar que não tinha carro, e a minha dificuldade de compreender isso estava no fato de que todos os meus parentes adultos possuíam um. Vi-o partindo um imenso bolo ao lado de minha avó, ocasião em que a família inteira se reuniu para comemorar com alegria as bodas de ouro deles. Vi-o lendo os jornais e questionando a política nacional com igual entusiasmo a de um jovem que imagina ainda poder mudar o mundo. Vi-o assistindo a um jogo do Flamengo pela televisão e gritando o nome de Zico quando este marcou um de seus belíssimos gols. Vi-o acompanhando, direta ou indiretamente, os momentos mais importantes de minha vida: o time de futebol, as brincadeiras de rua, a primeira comunhão, as primeiras festas, o vestibular, as namoradinhas etc. Enfim, eu o vi outra vez perto de mim, reavivando todas as ocasiões em que estivemos juntos.

Depois, levantei-me devagar e fui caminhar pela casa que ainda dormia. Meu olhar se demorou por entre os inúmeros móveis e objetos de decoração, até pairar sobre um porta-retrato do meu avô. Comecei, então, a relembrar a história dele. Era um homem humilde, nascido no município mais quente do cariri e que foi criado por um tio. Trabalhou como vendedor de tecidos a vida inteira, tendo por isso morado em diversas cidades. Chegou a colocar um negócio próprio, mas não logrou êxito. Em decorrência disso foi morar em Campina Grande, onde criou os filhos e trabalhou até se aposentar como balconista de uma loja de tecidos. Apesar de não ter muitos estudos, era um homem que lia muito. Uma curiosidade é que para poder ler sem constrangimento os livros considerados comunistas, ele trocava a capa destes pelas dos livros eclesiásticos. Esse posicionamento a favor das classes menos favorecidas influenciou os filhos e netos, alguns dos quais marcaram presença na militância esquerdista local. Mas, sua principal característica era mesmo a discrição: não pedia nada nem exigia a atenção de ninguém. Gostava de ficar em casa e só sair para o Convento Franciscano, cuja missa freqüentava. Até a data de sua morte foi significativa, já que ao fazer a passagem numa tarde de sábado ele evitou que parentes de outras cidades faltassem às obrigações. Eu diria que ele teria sido invisível, se pudesse ter escolhido.

Apesar do orgulho que eu sentia do meu avô, por achá-lo um homem sábio e honrado, ao me lembrar de todas essas coisas um certo sentimento de culpa me invadiu a alma. É que por muito tempo eu havia planejado lhe fazer uma visita. Seria uma tarde de Domingo e nós conversaríamos sobre política e futebol. Eu lhe perguntaria sobre os acontecimentos mais interessantes de sua vida, os momentos de tristeza ou de alegria. Indagaria ainda sobre a história da família, a nossa ancestralidade. Na minha imaginação ele estaria usando uma camisa cor de telha e segurando nas mãos o jornal, e eu me sentaria de frente a ele no terraço. Minha boca pronunciaria apenas uma ou outra pergunta, e de resto eu seria todo ouvidos. Todavia, isso nunca se realizou. Os finais de semana iam se passando e eu sempre adiava por qualquer motivo aquele encontro. Até que recebi a notícia de que meu avô estava na UTI, em estado dificílimo. Alguns dias depois ele iria para o outro lado. Nesse momento eu me senti traído pela vida, a qual foi implacável comigo ao não esperar que eu visitasse meu avô, e também por mim mesmo, que não fiz com que aquilo acontecesse. A partir de então essa culpa passou a me perseguir como uma sonora sombra.

Dessa forma, já cansado e com sono, e também por estar perto do amanhecer, resolvo voltar a dormir. Em poucos instantes me vejo naquela praça cheia de flores e de pássaros a cantar. Há muitas pessoas em todos os lugares, crianças, velhos e adultos, e todos parecem estar sorrindo. Ao caminhar por entre elas eu me deparo com o meu avô, ainda sentado no mesmo banco. Após abraçá-lo e beijá-lo com entusiasmo, eu me lembro de perguntar o que ele estava me dizendo naquele sonho anterior. Eis aí o momento de maior surpresa. Ele falou que estava dizendo apenas para que eu não me preocupasse com aquele encontro que não pode ser realizado na Terra. Afinal, dizia ele, nós temos nos encontrado muitas e muitas vezes, embora eu nem sempre tenha percebido. E, como aquela vez, nós iríamos nos encontrar ainda muito mais. Ele sorriu como uma criança e afirmou que “a vida sempre dá uma nova chance”. Mais tarde, quando acordei, eu não conseguia esquecer o tom de voz nem da expressão do rosto dele. E comecei a pensar em uma série de assuntos sobre os quais a gente poderia conversar num próximo encontro.

Saudades do Presente?

É provável que a chuva renitente de hoje tenha me estimulado a fazer o presente artigo, que certamente não deixa de ser permeado por reflexão e saudade. No entanto, não foi para lamentar a ausência do meu avô ou a escolha inconseqüente (mas óbvia) de um jovem de dezoito ou dezenove anos que escrevi o texto, até porque isso não pode mais ser modificado.

Meu intuito é chamar a atenção para o caso das pessoas presentes, amigos e familiares, com quem não conseguimos conviver como gostaríamos em virtude dos inúmeros compromissos profissionais e pessoais que a vida impõe. De fato, como conversar mais com o primo professor que se aposentou, como trocar mais cartas eletrônicas com o amigo de infância que mora no outro continente, como viajar mais com o pai ao Cariri e como visitar mais o irmão mais velho no Recife se as aulas têm que ser preparadas, se os clientes têm que ser atendidos e se a tese de doutorado tem que ser escrita?

O que angustia não é o passado que se foi, mas o presente que se esvai e que continua se esvaindo por entre os dedos das mãos enquanto assistimos a tudo inertes. O fato é que, mesmo que tentemos conciliar os desejos com as obrigações e o presente com o que esperamos do futuro, sempre perderemos algo, pois a vida é imensa e não cabe na palma de uma mão.

Esse conflito é certamente acentuado pela modernidade, ou pela pós-modernidade, que parece ter transformado o mundo em máquina e o ser humano em engrenagem, reduzindo os sentimentos às necessidades. Ah, que saudade dos amigos presentes, dos familiares presentes e do tempo presente!...

(João Pessoa/PB, 22 de agosto de 2010)

Um comentário:

Thiago Lia Fook Meira Braga disse...

Caro Talden, Drummond não apenas cantou o tempo presente, mas também soube ver a flor que nasceu na rua e furou o asfalto. Suas palavras vão "de branco pela rua cinzenta" e respondem "não!" à pergunta: "devo seguir até o enjôo?" Forte abraço!