sexta-feira, 4 de março de 2011

"Amizade e Direitos Humanos" - Eduardo Ramalho Rabenhorst


O texto abaixo foi escrito por Eduardo Ramalho Rabenhorst, professor de Filosofia Jurídica do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, no seu blog intitulado "Modos de dizer o mundo". Na época eu gostei tanto da forma carinhosa e original como o tema foi tratado que salvei o artigo e o repassei aos amigos mais próximos. De fato, amizade e direitos humanos têm muito em comum, apesar das poucas abordagens a respeito. Eu considero que um dos maiores patrimônios de um ser humano são suas amizades, e que por isso devemos preservá-las e regá-las continuamente. O poeta gaúcho Mário Quintana escreveu que "A amizade é um amor que nunca morre", e eu tenho certeza de que ele está certo. Eu gostaria de dedicar esta postagem aos meus amigos, aqueles que estão ao meu lado nos momentos bons e maus e que torcem pelo meu êxito, porque eu os amo realmente. Eis, finalmente, o texto:

AMIZADE E DIREITOS HUMANOS
Eduardo Ramalho Rabenhorst

Pode parecer estranho tentar estabelecer uma relação entre dois universos aparentemente tão distantes. Afinal, onde poderia se encontrar o nexo entre a amizade e os direitos humanos? Creio que o estranhamento inicial pode ser dissipado se lembrarmos que a amizade é uma paixão fundamental que conserva juntos os seres humanos. Dessa forma, a amizade apresenta-se como uma das dimensões do amor. Aliás, os gregos chamavam a amizade de philia, ou seja, uma espécie de sentimento de simpatia e de afeição mútua entre dois indivíduos. Para eles, a amizade não se confundia com duas outras modalidades de expressão do desejo de fusão interpessoal, a saber, o amor parental (ágape) e o amor erótico (eros).

De fato, o amor parental é um sentimento espontâneo que liga de forma incondicional nossas vidas a vida dos nossos filhos. Como tal, ele independe do próprio valor de seu objeto. Amamos nossos filhos não pelo o que eles valem – e por vezes, para nosso desespero, eles não valem muita coisa – mas por sua própria natureza, isto é, pelo simples fato de que eles integram nossa própria existência. Daí o caráter abnegado e altruísta desta modalidade de afeto. Não exigimos retribuição alguma. Satisfazemo-nos, por vezes, com um simples sorriso.

A amizade também não se confunde com o amor erótico, pois independe de toda sexualidade. A propósito, em contraste com o amor parental que se caracteriza por uma fusão espontânea, o amor erótico vem a ser exatamente o desejo de obter essa fusão com uma outra pessoa. Logo, ao contrário do amor parental, o amor erótico não é a fusão propriamente dita, mas a busca desesperada por ela. E como só buscamos aquilo que nos falta, podemos concluir como faz Platão no seu Banquete, que o amor erótico caracteriza-se, antes de tudo, por sua imperfeição.

Certamente todos lembram aqui da estória que Platão nos conta sobre o nascimento de Eros, o deus do amor. Quando Afrodite nasceu, os deuses do Olimpo decidiram celebrar o acontecimento oferecendo um banquete. Entretanto, não convidaram Penúria, deusa da pobreza, que no decorrer do evento, sentou-se junto à porta para mendigar os sobejos. Nesse momento, Engenho, deus da abundância, embriagado pelo néctar que havia bebido, saiu para o jardim e adormeceu. Penúria aproveitou o ensejo, deitou-se com ele concebeu Eros. Tal foi o nascimento do amor, fruto do encontro entre a pobreza e a abundância.

O que Platão pretende demonstrar com esta estória é o caráter ambivalente e irrealizável do amor erótico: abundante, por um lado, pobre e miserável por outro, pois cada vez que aliviamos o desejo sexual, caímos no vazio e passamos a desejar novamente, enveredando assim numa busca incessante que nos angustia. Daí a tensão trágica do amor erótico tão bem retratada no Banquete: “Por natureza, o amor não é mortal, nem imortal, mas, num só dia, tão depressa se encontra pleno de vigor e belo, vivendo na abundância, como tão depressa morre (...) O que adquire escapa-lhe sem cessar, de maneira que nunca se encontra, nem na pobreza, nem na opulência”.

A estória contada por Platão pode nos ajudar a compreender porque a amizade difere tanto do amor parental quanto do amor erótico. Em contraste com o primeiro, o amor fraterno não é espontâneo, mas resulta de uma decisão (o que me faz lembrar a famosa frase de Aristóteles tão citada nos blogs de adolescentes da internet: “É o destino que nos dá a nossa família, mas somos nós que escolhemos os amigos”).

No mais, enquanto o amor parental se caracteriza pela desigualdade natural existente entre os pais e os filhos, o amor fraterno é o amor entre iguais. Da mesma forma, diferentemente do amor erótico que busca exclusividade, a amizade deseja estabelecer uma fusão com todos os seres humanos. Em seguida, podemos dizer que, contrariando ao mesmo tempo o amor parental e o amor erótico, o amor fraterno não é fusão, mas repartição, pois, como já havia observado Montaigne, “na verdadeira amizade dou-me ao meu amigo mais do que dele quero para mim”. Por fim, das três modalidades de amor, a amizade é aquela que mais revela a dimensão humana: de alguma forma, compartilhamos com os animais o afeto pelos descendentes e os impulsos sexuais. Contudo, a amizade é tipicamente humana, já que ela resulta de uma atitude voluntária e reflexiva.

Podemos definir a amizade como o sentimento de respeito, responsabilidade e cuidado por qualquer outro ser humano. Logo, a verdadeira amizade transmite os limites da individualidade; trata-se de um afeto pela humanidade como um todo. Ora, é exatamente esta pretensão de universalidade que liga a amizade aos direitos humanos. Afinal, o que pode servir de fundamento para a idéia de direitos humanos senão o fato de que todos os seres humanos são iguais e devem ser tratados com respeito? E a raiz da palavra respeito, convém lembrar, é respicere, isto é, “olhar para”. Respeitamos alguém quando contemplamos o outro como congênere; quando deixamos surgir, no nosso interior, a imagem dele ao mesmo tempo como um diferente e um igual.

Em certa ocasião escrevi um livro sobre a dignidade humana que, de certa forma, até hoje me persegue. Lá procurei mostrar que não existe uma maneira de se provar que todos os seres humanos são igualmente dignos. Nesse sentido, acredito que a dignidade humana é uma crença que não pode ser justificada plenamente. Entretanto, não se trata de uma crença arbitrária. Afinal, toda ética começa por um princípio de reconhecimento. Daí a simpatia que nutro com relação às idéias de um filósofo judeu, Emmanuel Levinas, que afirma ser o rosto do outro o elemento que permite o reconhecimento de minha própria identidade. Ou nas próprias palavras de Levinas: “É apenas quando abordo o Outro que assisto a mim mesmo”. Através do rosto, percebo, de imediato, o caráter sagrado e inviolável de cada ser humano.

Como a amizade, os direitos humanos precisam ser cultivados, pois, se por um lado, é bem verdade que tais direitos passaram a se constituir em exigências que constrangem cada vez mais a própria maneira como nos percebemos enquanto cidadãos e mesmo como membros da espécie humana, por outro, não existe qualquer garantia de que este importante patrimônio moral da humanidade permaneça intocado.

Todos os dias recebemos de diversas partes do mundo, notícias sobre graves violações e ameaças aos direitos humanos. No nosso país, parte da mídia continua a incutir a idéia de que os militantes dos direitos humanos não passam de defensores de bandidos. Daí a importância da educação em direitos humanos, concebida não como a simples introdução de um conteúdo temático sobre esses direitos nos programas escolares ou universitários, mas essencialmente como um meio capaz de proporcionar o respeito pelas pessoas. Só assim conseguiremos construir uma verdadeira cultura dos direitos humanos, dessa feita em sentido antropológico mesmo, isto é, como um conjunto e valores e concepções sobre a dignidade dos seres humanos.

Gostaria de lembrar também que da mesma forma como acontece com os direitos humanos, a amizade é tende a ser percebida de maneira enganosa e equivocada. Em primeiro lugar porque numa sociedade como a nossa, centrada no valor da utilidade, amigos parecem ser simplesmente aqueles que nos proporcionam vantagens recíprocas. Ora, no século XVI, Etienne de La Boétie já advertia: Entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não sociedade. Não se apóiam mutuamente, mas temem-se mutuamente. Não são amigos, são cúmplices.

Por outro lado, vivemos uma época que hipervaloriza a interioridade dos indivíduos em detrimento das formas de relacionamento voltadas para o espaço público. Isso nos impele de perceber a amizade de forma limitada, como ligação a uma só pessoa ou um grupo de pessoas e não à humanidade como um todo. Assim, esquecemos algo fundamental: que um mundo sem espaço para a amizade, concebida como reconhecimento de que somos, todos, irmãos, não merece, como bem dizia Espinoza, “o nome de cidade, mas antes o de solidão”.

Devemos, portanto, ampliar a nossa visão da tradicional da amizade vislumbrando-a da maneira mais ampla possível, isto é, como possibilidade de construção de uma fraternidade mundial. Conforme bem escreve Fernando Savater, a maior vantagem que podemos obter de nossos semelhantes não é a posse de mais coisas, mas a cumplicidade e o afeto de mais seres livres. Quem sabe assim, conseguiremos, ao mesmo tempo, humanizar o mundo e tornarmo-nos verdadeiramente humanos. E talvez alguém aqui se pergunte: mas, afinal, para que serve isso. Por que devemos tratar os outros com respeito? O mesmo Savater responde: Não serve para nada. Afinal, só os servos servem e não estamos falando aqui de escravos, mas de seres livres. Seres que compreendem que a liberdade não serve e não gosta de ser servida.

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