domingo, 20 de janeiro de 2013

O Homem das Poucas Palavras - Crônica em Homenagem ao Meu Avô Nezinho Farias




Ontem à noite o meu avô paterno me apareceu em um intrigante sonho. Sentado no banco de um praça, onde os jardins exibiam flores de todas as cores e tipos e os pássaros pousavam nas fontes para tomar água a um só tempo que os homens, ele me convidava para ficar ao seu lado. É que ele tinha partido sem me revelar uma importante mensagem, e somente por isso teve de voltar. Percebi que os seus olhos brilhavam intensamente e que uma estranha energia envolvia todo o seu corpo, o que me transmitiu uma sensação de felicidade. Como meu avô já estava passando muitos minutos em silêncio, eu insisti em saber o que ele tinha para me dizer. Após pensar um pouco ele pôs as mãos dele sobre a minha cabeça e começou a soletrar muito suavemente alguma coisa, como se estivesse fazendo uma oração, de modo que nada pude escutar. De repente, meu corpo esquentou e em poucos minutos eu senti que voava sobre o infinito. Essa sensação de liberdade do mesmo modo que me causou prazer me fez sentir medo, e por causa disso eu acordei assustado.

Deitado na cama, demorei a reparar que o meu quarto ainda estava banhado pela noite. Os meus pensamentos pareciam ter permanecido no banco daquela praça, como alguém que se perde no meio de um sonho. Nesse instante minha memória abriu as portas e eu comecei a rever passagens importantes ao lado de meu avô. Vi-o sentado na cadeira de balanço da sala de minha casa, enquanto eu e meus irmãos brincávamos com carrinhos de ferro sobre o tapete. Vi-o com certo constrangimento ao me explicar que não tinha carro, e a minha dificuldade de compreender isso estava no fato de que todos os meus parentes adultos possuíam um. Vi-o partindo um imenso bolo ao lado de minha avó, ocasião em que a família inteira se reuniu para comemorar com alegria as bodas de ouro deles. Vi-o lendo os jornais e questionando a política nacional com igual entusiasmo a de um jovem que imagina ainda poder mudar o mundo. Vi-o assistindo a um jogo do Flamengo pela televisão e gritando o nome de Zico quando este marcou um de seus belíssimos gols. Vi-o acompanhando, direta ou indiretamente, os momentos mais importantes de minha vida: o time de futebol, as brincadeiras de rua, a primeira comunhão, as primeiras festas, o vestibular, as namoradinhas etc. Enfim, eu o vi outra vez perto de mim, reavivando todas as ocasiões em que estivemos juntos.

Depois, levantei-me devagar e fui caminhar pela casa que ainda dormia. Meu olhar se demorou por entre os inúmeros móveis e objetos de decoração, até pairar sobre um porta-retrato do meu avô. Comecei, então, a relembrar a história dele. Era um homem humilde, nascido no município mais quente do cariri e que foi criado por um tio. Trabalhou como vendedor de tecidos a vida inteira, tendo por isso morado em diversas cidades. Chegou a colocar um negócio próprio, mas não logrou êxito. Em decorrência disso foi morar em Campina Grande, onde criou os filhos e trabalhou até se aposentar como balconista de uma loja de tecidos. Apesar de não ter muitos estudos, era um homem que lia muito. Uma curiosidade é que para poder ler sem constrangimento os livros considerados comunistas, ele trocava a capa destes pelas dos livros eclesiásticos. Esse posicionamento a favor das classes menos favorecidas influenciou os filhos e netos, alguns dos quais marcaram presença na militância esquerdista local. Mas, sua principal característica era mesmo a discrição: não pedia nada nem exigia a atenção de ninguém. Gostava de ficar em casa e só sair para o Convento Franciscano, cuja missa freqüentava. Até a data de sua morte foi significativa, já que ao fazer a passagem numa tarde de sábado ele evitou que parentes de outras cidades faltassem às obrigações. Eu diria que ele teria sido invisível, se pudesse ter escolhido.

Apesar do orgulho que eu sentia do meu avô, por achá-lo um homem sábio e honrado, ao me lembrar de todas essas coisas um certo sentimento de culpa me invadiu a alma. É que por muito tempo eu havia planejado lhe fazer uma visita. Seria uma tarde de Domingo e nós conversaríamos sobre política e futebol. Eu lhe perguntaria sobre os acontecimentos mais interessantes de sua vida, os momentos de tristeza ou de alegria. Indagaria ainda sobre a história da família, a nossa ancestralidade. Na minha imaginação ele estaria usando uma camisa cor de telha e segurando nas mãos o jornal, e eu me sentaria de frente a ele no terraço. Minha boca pronunciaria apenas uma ou outra pergunta, e de resto eu seria todo ouvidos. Todavia, isso nunca se realizou. Os finais de semana iam se passando e eu sempre adiava por qualquer motivo aquele encontro. Até que recebi a notícia de que meu avô estava na UTI, em estado dificílimo. Alguns dias depois ele iria para o outro lado. Nesse momento eu me senti traído pela vida, a qual foi implacável comigo ao não esperar que eu visitasse meu avô, e também por mim mesmo, que não fiz com que aquilo acontecesse. A partir de então essa culpa passou a me perseguir como uma sonora sombra.

Dessa forma, já cansado e com sono, e também por estar perto do amanhecer, resolvo voltar a dormir. Em poucos instantes me vejo naquela praça cheia de flores e de pássaros a cantar. Há muitas pessoas em todos os lugares, crianças, velhos e adultos, e todos parecem estar sorrindo. Ao caminhar por entre elas eu me deparo com o meu avô, ainda sentado no mesmo banco. Após abraçá-lo e beijá-lo com entusiasmo, eu me lembro de perguntar o que ele estava me dizendo naquele sonho anterior. Eis aí o momento de maior surpresa. Ele falou que estava dizendo apenas para que eu não me preocupasse com aquele encontro que não pode ser realizado na Terra. Afinal, dizia ele, nós temos nos encontrado muitas e muitas vezes, embora eu nem sempre tenha percebido. E, como aquela vez, nós iríamos nos encontrar ainda muito mais. Ele sorriu como uma criança e afirmou que “a vida sempre dá uma nova chance”. Mais tarde, quando acordei, eu não conseguia esquecer do tom de voz nem da expressão do rosto dele. E comecei a pensar em uma série de assuntos sobre os quais a gente poderia conversar num próximo encontro.


* A crônica acima inspirada no sonho que tive com o meu avô Nezinho Farias foi publicada no portal de notícias Paraíba on Line (www.paraibaonline.com.br), e provavelmente foi escrita em 2000 ou 2001.