terça-feira, 22 de dezembro de 2009

"Aplicação do Princípio da Precaução ao Caso dos Transgênicos", de Geórgia Karênia

Acabei de receber a primeira versão da capa do livro “Aplicação do princípio da precaução ao caso dos transgênicos”, de autoria da advogada Geórgia Karênia, o qual será publicado no próximo ano pela Editora da Universidade Federal da Paraíba. Fiquei alegre com a notícia, porque sou amigo da autora.

Contudo, minha alegria atende a outros motivos além da amizade, porque não posso deixar de dizer que me sinto também um pouco responsável por essa conquista. Além de ser o autor do prefácio e de ter sido o seu orientador na monografia de conclusão de curso que resultou nesse trabalho, foi minha a idéia de publicá-lo.

É claro que o mérito pertence unicamente à autora, que foi e continua sendo uma aluna exemplar. Infelizmente, mesmo tendo feito dezenas de orientações depois, não voltei e me deparar com nenhum trabalho com o mesmo fôlego.

Parabéns, Geórgia, por essa grande conquista! Certamente, trata-se de uma contribuição relevante para a doutrina jusambientalista brasileira.

Logo abaixo, reproduzo na íntegra o prefácio que escrevi para o livro:

Prefácio

Um forte debate acerca dos organismos geneticamente modificado tem sido promovido no Brasil nos últimos anos, envolvendo comunidade científica, determinados setores empresariais, imprensa, Poder Público e sociedade civil organizada. De um lado, as empresas que trabalham com biotecnologia prometem realizar maravilhas por meio da manipulação genética, como aumento da produtividade agrícola, criação de animais e plantas resistentes às intempéries ambientais, descoberta de novas vacinas, produção de alimentos mais nutritivos e retirada dos genes defeituosos dos seres humanos.

De outro lado, parte da comunidade científica e as organizações não governamentais alertam para os gravíssimos riscos que essa técnica pode trazer para o meio ambiente e para a saúde humana, já que as conseqüências dessas alterações genéticas ainda não podem ser medidas, seja em termos ecológicos, econômicos ou de saúde pública. Por ser o meio ambiente considerado pelo caput do art. 225 da Constituição Federal como um bem essencial à sadia qualidade de vida da coletividade, nem o Poder Público nem a sociedade podem se furtar da obrigação de defendê-lo procurando eliminar ou pelo menos diminuir esses riscos.

Nesse diapasão, ganha destaque a necessidade de proteção ao patrimônio genético e, consequentemente, à diversidade biológica, de que depende todo o equilíbrio ambiental planetário, já que a biotecnologia pode trazer efeitos imprevisíveis ao modificar a composição genética dos seres vivos. O princípio da precaução recomenda uma postura de cautela por parte do Estado e da sociedade diante não das intervenções que causam efeitos negativos sobre o meio ambiente e a saúde humana, mas diante daquelas que simplesmente poderão chegar a causar tais efeitos.

O princípio da precaução estabelece a vedação de intervenções no meio ambiente, salvo se houver a certeza que as alterações não causaram reações adversas, já que nem sempre a ciência pode oferecer à sociedade respostas conclusivas sobre a inocuidade de determinados procedimentos. A Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento consagrou pioneiramente o princípio da precaução no âmbito internacional, ao estabelecer no Princípio 15 que “De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”.

O princípio em comento ganha maior importância com a discussão sobre a sociedade de risco, que Ulrich Beck
[1] classifica como um estágio da modernidade em que os efeitos da industrialização começam a ganhar contornos de ameaça planetária. Trata-se de um segundo momento da sociedade industrial, que deixa a previsibilidade dos fatos para passar a ser caracterizado essencialmente pelos riscos produzidos e pela incerteza gerada.

Os riscos gerados pela industrialização e pelo desenvolvimento de novas tecnologias ameaçam a segurança e a qualidade de vida das pessoas, estando presentes em praticamente todos os aspectos da sociedade e não podendo ser identificados e quantificados com facilidade. São riscos cuja complexidade não pode ser abarcada pelos pressupostos científicos demasiadamente especializados e próprios da modernidade clássica, visto as ameaças existentes não são mais fixas e previsíveis.

Quando se fala em riscos ecológicos o que está em jogo é o meio ambiente e, por conseqüência, a qualidade de vida e a saúde humana, embora as implicações econômicas e sociais também devam ser sempre observadas. O problema desse tipo de riscos é que os danos causados são de difícil ou mesmo de impossível recuperação, de maneira que a única forma de proteger efetivamente o patrimônio ambiental é evitando que tais danos ocorram, mesmo quando não se tenha certeza a respeito da sua possibilidade de ocorrência.

José Rubens Morato Leite
[2] destaca que sociedade de risco é aquela que pode sofrer um colapso ambiental em detrimento do modelo de desenvolvimento econômico adotado. O caso da energia nuclear, das mudanças climáticas e dos organismos geneticamente modificados ilustra bem esse panorama de incerteza.

É claro que ao versar sobre as normas de segurança envolvendo os organismos geneticamente modificados a Lei nº 11.105/05 oficializou a possibilidade de a engenharia genética trazer riscos. Aliás, não fosse por isso o inciso IV do § 1º do art. 225 da Constituição Federal não determinaria o controle e a fiscalização por parte do Poder Público em relação às pessoas que desenvolvem tais atividades.

Os alimentos transgênicos estão relacionados ao aumento da incidência de alergias, pois ao se transportar o gene de uma espécie para outra o elemento alergênico possivelmente estará sendo transplantado junto. Além do mais, no cruzamento de genes de espécies diferentes novos compostos podem ser formados, como proteínas e aminoácidos, abrindo margem para o surgimento de outros elementos alergênicos.

Outro problema verificado diz respeito aos antibióticos, já que normalmente os cientistas inserem nos alimentos genes de bactérias resistentes a tais medicamentos com o intuito de se assegurarem do sucesso da modificação genética. Isso pode fazer com que determinados antibióticos não surtam efeitos no corpo humano em virtude da resistência dos microorganismos.

A potencialização dos efeitos das substâncias tóxicas é outra questão importante, visto que inúmeras plantas e micróbios dispõem naturalmente de tais substâncias para se defenderem de seus inimigos. É possível que o transplante de um gene de uma espécie para outra aumente o nível de toxicidade dessas substâncias, que passariam a prejudicar os seres humanos e toda a cadeia ecológica.

O surgimento de superpragas devido à transferência de genes resistentes é uma ameaça ao meio ambiente, pois a tendência é que as pragas se tornem resistentes aos genes transferidos. O uso continuado de sementes transgênicas criará um ciclo vicioso, já que a cada vez se exigirão doses maiores ou mais fortes de defensivos.

A introdução de uma espécie no meio ambiente é irreversível, já que o gene pode se espalhar sem qualquer controle, de forma que a impossibilidade de controlar a natureza é um risco a ser considerado
[3]. É por isso que não deve ocorrer o descarte de tais substâncias na natureza, que poderiam causar graves danos aos recursos ambientais.

Os OGMs podem causar a eliminação de insetos e de microorganismos do ecossistema, empobrecendo os ecossistemas e ocasionando desequilíbrio ambiental. Outro possível efeito é a transformação de culturas tradicionais em culturas geneticamente modificadas, por meio da troca de pólen entre culturas de polinização aberta, acarretando a perda de variedades nativas e a contaminação das reservas e estoques de material genético
[4].

Já entre as implicações econômicas e sociais, cabe destacar: dependência tecnológica, aumento do desemprego no campo, desfavorecimento da agricultura familiar, consolidação dos monopólios das grandes corporações internacionais, elevação dos preços dos produtos e serviços oriundos da biotecnologia, inibição da livre circulação da informação científica em decorrência do segredo comercial gerado pelo patenteamento e inviabilização da pesquisa biotecnológica por parte dos países em desenvolvimento
[5].

Nesse diapasão, cabe destacar a primorosa pesquisa feita pela advogada Geórgia Karênia Rodrigues Martins Marsicano de Melo, sobre a necessidade de aplicação do princípio da precaução ao caso dos transgênicos. A autora se debruçou sobre a melhor doutrina e sobre a jurisprudência mais atualizada para elaborar o seu trabalho, sempre destacando a precaução como uma medida imperativa no intuito de resguardar o direito fundamental ao meio ambiente e à qualidade de vida da coletividade.

O trabalho da advogada Geórgia Karênia aborda, de uma maneira acessível e didática, as questões mais atuais e polêmicas que dizem respeito aos organismos geneticamente modificados. Tanto os operadores do Direito quanto os estudantes, além daqueles simplesmente interessados pela temática ambiental, encontrarão uma relevante fonte de pesquisa desse assunto, cuja discussão ainda precisa ser aprofundada pelos mais variados setores da sociedade.

Campina Grande, 15 de fevereiro de 2008.

Talden Farias

Professor da Universidade Estadual da Paraíba, da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Paraíba e da Escola da Magistratura do Rio Grande do Norte. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Paraíba e doutorando em Recursos Naturais pela Universidade Federal de Campina Grande. Membro do Conselho de Proteção Ambiental do Estado da Paraíba e ex-chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura de João Pessoa. Autor dos livros “Direito ambiental: tópicos especiais” (Universidade Federal da Paraíba, 2007) e “Licenciamento ambiental: aspectos teóricos e práticos” (Fórum, 2007).


[1] BECK, Ulrich. A Reinvenção da Política. In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Unesp, 1997, p. 17.
[2] LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. Direito constitucional ambiental brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 132.
[3] FIORILLO, Celso Antônio Pachêco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 217.
[4] GUERRANTE, Rafaela Di Sabato; ANTUNES, Adelaide Souza; PEREIRA JÚNIOR, Nei. Transgênicos, a Difícil Relação entre a Ciência, a Sociedade e o Mercado. In: VALLE, Silvio; TELLES, José Luiz (orgs). Bioética e Biorrisco: Abordagem Transdiciplinar. Rio de Janeiro: Interciência, 2003, p. 54.
[5] VIEIRA, Paulo Freire. Erosão da Biodiversidade e Gestão Patrimonial das Interações Sociedade-Natureza: Oportunidades e Riscos da Inovação Biotecnológica. In: VARELLA, Marcelo Dias; BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro (orgs). O novo em Direito Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998, p. 236.

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