quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Relato de um Delirante

Encontrei em meu computador um texto que comecei a escrever há mais ou menos seis anos, intitulado “Relato de um delirante”, e resolvei transcrever abaixo a primeira das quatro partes dele. Inicialmente, minha idéia era escrever sobre uma pessoa que oscila entre duas realidades, tendo a segunda realidade um caráter onírico e surreal. No decorrer do texto, o personagem passaria a questionar a primeira

realidade, que é o cotidiano de cada ser humano, para concluir que a vida é um absurdo. Contudo, como depois achei a idéia comum e falsamente pretensiosa, eu acabei desistindo do texto. Fora isso, senti que o texto estava tomando um caminho muito espiritualista, o que destoava da proposta inicial. Nesse instante, percebi que o texto ensaiou uma vida própria, e me revoltei. Ei-lo:

RELATO DE UM DELIRANTE

I

Acordei-me com enorme disposição naquela manhã de sábado. Espreguicei-me, virei de um lado para o outro, e com muita surpresa percebi que a minha esposa não dormia ao meu lado. Mais surpreso fiquei quando percebi que, ao invés das paredes e móveis do meu quarto, a paisagem que me arrodeava era a de um imenso e bonito jardim. Olhei ao meu redor e procurei em vão a escrivaninha, o armário, o pequeno sofá, a janela, a porta do banheiro e os quadros que tão bem decoravam o ambiente. Mas tudo o que eu via eram árvores, pássaros e frutas. Belisquei-me os braços com alguma força para saber se aquilo era simplesmente um sonho bom, mas a dor que senti me devolveu o sentimento de realidade. Tive, então, o ímpeto de me levantar e de sair caminhando no meio daquele bosque, porque somente assim talvez eu descobrisse a resposta para o fato de eu me encontrar ali.

Procurei os meus chinelos e, como não os encontrasse, comecei a caminhar de pés descalços, apenas vestido com o meu pijama de listras. Espantei-me ao descobrir que nem as pedras nem os espinhos podiam ferir os meus pés delicados. Talvez nem o maior estudioso de botânica do mundo conseguisse enumerar uma flora tão variada e abundante. Havia rosas, petúnias, begônias, dálias, lírios e orquídeas como nunca se viu antes. Pássaros que jamais imaginei existir sobrevoavam o céu cantando uma melodia suave, e depois pousavam nos galhos das árvores. A fartura da copa e dos frutos destas era tamanha que me demorei a acreditar se aquilo era possível. Ao seguir pelas trilhas daquele jardim, deparei-me com pequenas fontes de onde jorrava a água mais límpida e de melhor gosto que se pode conhecer. De algum lugar se espalhava o odor de diversas fragrâncias, a exemplo de absinto, alfazema, almíscar, patchuli, lavanda e outras. Se aquilo fosse um sonho, pensei, a realidade não seria tão interessante.

De repente, ouvi um relincho que veio por detrás dos pés de eucalipto. Ao me encaminhar para lá, descobri um rio que corria tão cristalino que pude ver com nitidez a cor dos seus inúmeros peixes. Caminhei pela sua margem até me deparar com uma cachoeira de aproximadamente quarenta metros de altura, onde alguns cavalos alados tomavam banho. Crianças nuas cercavam esses animais, talvez tomando conta deles ou simplesmente brincando. Tal como as árvores, os pássaros e os cavalos, elas pareciam estar sorrindo desde o âmago da alma. Animei-me com a possibilidade de falar com elas, mas meus muitos gritos e gestos foram em vão. Era como se eu não estivesse ali, ou não pudesse ser visto. Vendo que de nada adiantavam os meus chamamentos, resolvi escalar a montanha de onde caia o rio. Ainda não tinha chegado ao topo quando presenciei o entardecer mais bonito de toda a minha vida. O acaso ia misturando o lilás, o laranja e o azul, nas suas muitas variações, transformando o céu numa imensa e mutável tela. A integração que tive com a natureza nesse instante foi tão grande, que eu me senti irmão das nuvens, das araucárias, das gotas de orvalho e até dos menores grãos de areia. Eu já não me lembrava mais da minha casa, da minha família ou do meu emprego.

Foi quando eu avistei, na outra margem do rio, um grupo de pessoas. Eram homens e mulheres envoltos num manto amarelo, reunidos em forma de círculo num grande descampado. Eles pareciam estar orando ou adorando algum tipo de deus. Não tive a ousadia de interrompê-los, e esperei sentando sobre uma pedra que terminassem o seu ritual. No momento em que se dispersaram, notei que um deles me viu e foi comunicar a minha presença àquele que parecia ser o líder. O chefe veio até a margem em frente aquela onde eu me encontrava, no que foi seguido pelos outros, e pediu para que eu atravessasse o rio. Como eu insistisse em dizer que não sabia nadar, eles me mostraram umas pedras por cima das quais eu poderia passar com tranqüilidade. Cruzei o rio, um tanto confuso por não ter visto antes as tais pedras, e rapidamente fui cercado por aquelas pessoas. Elas me olharam com profundidade, como se estivessem me estudando, e aquilo me incomodou. Eu queria saber apenas que lugar era aquele e o que eu estava fazendo ali, e foi o que perguntei. Nesse instante eles soltaram uma gargalhada e pediram para que eu os acompanhasse até a sua aldeia, onde todas as explicações me seriam dadas.

Apesar de não tê-los achado muito simpáticos, pois além de não responderem às minhas perguntas ainda debocharam de mim, minha intuição pedia que os seguisse. Caminhamos lenta e compassadamente, e a paisagem que vi pelo caminho era mais bonita e inspiradora que as que tinha visto antes. Chamou-me a atenção umas pedras enormes em formato de rosto humano, e as palmeiras imperiais que deviam medir em torno de cinqüenta metros de altura. O céu, que não há muito tinha escurecido, foi o mais limpo e estrelado que já pude contemplar. Fiz ainda alguns questionamentos, mas eles me ignoraram. Quando finalmente chegamos á aldeia, um dos homens de manto amarelo me levou a uma das casas. Eram casinhas de barro pequenas mas muito arrumadas, que se organizavam em torno de uma praça principal. Acho que devia haver umas cem delas. A ostentação parecia não existir ali.

Logo que entrei na primeira sala percebi que tinha me enganado, pois a casa além de ricamente decorada era enorme. Tapetes luxuosos, móveis finos, quadros bonitos, ornamentos em ouro e prata, pedras preciosas incrustadas nas paredes, lustres do mais raro cristal, por mais que quisesse eu não conseguiria descrever tamanha ostentação. Fiquei tão deslumbrado com aquilo que tive de receber uma leve tapa do meu acompanhante para poder prosseguir. Ele me pediu desculpas e disse que o seu mestre já me aguardava. Depois de atravessarmos mais de uma dezena de salas igualmente impressionantes, chegamos diante de uma enorme porta de aço que se abriu sem que ninguém a tocasse. Sentado numa poltrona de marfim avistei um homem envolto numa manta violeta e que devia ter pouco mais de cinqüenta anos. Ele era alto, forte, branco e tinha barba e cabelos cumpridos. Seu olhar era brilhante e sua voz estridente. Quando ele falou, involuntariamente tive a iniciativa de me ajoelhar. A razão disso talvez tenha sido o respeito que a figura dele me transmitia. Ainda hoje lembro com exatidão que ele me disse ‘Meu filho, seja bem-vindo ao outro lado. Fico feliz em saber que fizeste uma boa viagem’. Ao ouvir aquilo entrei em pânico, pois de repente tomei consciência de que eu estava morto. Aquele lugar era uma espécie de vale para os que tinham morrido. Isso me assustou a tal ponto que caí inconsciente no chão, batendo com a cabeça.

Na manhã do dia seguinte eu acordo um tanto inquieto, e mais com medo do que com preguiça abro os olhos. Qual não foi a minha surpresa ao saber que me encontrava no meu quarto, ao lado de minha esposa. Observei com alívio a velha escrivaninha, o sofá, os quadros que pintei na minha adolescência e a janela por onde se via o quintal. Depois de me levantar e olhar através da janela para o céu que se perdia de tanto azul, eu saio pelos outros compartimentos da casa para me certificar de que não estou mais sonhando. O sonho daquela noite tinha sido muito estranho, era a um só tempo mórbido e inspirador, e eu agradeci aos céus pelo fato de aquilo ter sido apenas um devaneio onírico. No entanto, me intrigava o fato de que me doía o lado esquerdo da cabeça, exatamente no ponto em que eu havia me machucado naquele maldito sonho. E como a dor foi gradualmente aumentando, deitei-me novamente, agora no sofá da sala, e rapidamente adormeci.

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