Eu acabei encontrando por acaso na Internet a crônica "O outro lado", que escrevi e publiquei no ano de 2001 ou 2002. O texto usa como pretexto inicial um filme policial norte-americano para fazer uma breve análise da imagem dos advogados na sociedade contemporânea.
http://prcarpenedo.blog.terra.com.br/2008/07/29/o-outro-lado-por-talden-queiroz-farias/
O filme policial “O Advogado dos Cinco
Crimes” (“A Murder of Crows”, 1999), do diretor Rowdy Herrington, conta a
história de um famoso advogado que, depois de abandonar a defesa de um rico e
inescrupuloso cliente, acaba perdendo a licença para advogar. Sua inesperada
atitude contradiz o seu histórico de muitas defesas vitoriosas, e a todo custo,
a clientes culpados. Ele então se muda para a Flórida com a intenção de
escrever um livro. Lá, faz amizade com um senhor que lhe empresta um manuscrito
para que ele o analise, mas quando vai devolver encontra o homem morto. Sabendo
se tratar de uma obra de valor, o ex-advogado publica o livro como sendo seu e
faz um enorme sucesso em todo o país. Porém, a vida do protagonista da trama se
complicou porque um detetive descobre que os assassinatos narrados com detalhes
na obra são verdadeiros. De uma hora para outra o ex-advogado, que tinha
acabado de se tornar milionário, vira um fugitivo da polícia. O fato é que
esses crimes foram todos cometidos contra advogados mercenários, capazes de
absolver um grande criminoso desde que fossem bem pagos. No final, descobriu-se
que o autor dos tão bem planejados crimes tinha sido um genial professor de
teatro que odiava os advogados, pelo fato de que o assassino de sua esposa e
filhos foi declarado inocente. O teatrólogo é que tinha escrito o tal livro, e
planejara tudo para incriminar o ex-advogado, caso ele se deslumbrasse pela
possibilidade de um sucesso fácil ao publicar um livro escrito por outrem.
Como
se vê, não se trata de um filme surpreendente, embora a sua trama seja um tanto
elaborada. Todavia, ele aborda algumas realidades, a exemplo da má fama de que
goza historicamente a classe advocatícia. A imagem popularesca dos causídicos é
equivalente a de um ator, capaz de mentir, omitir e de falsificar provas, e de
manipular tanto o júri quanto o juiz, somente para se sair o vencedor na lide.
Os advogados seriam os artistas da retórica, ciência que pelo conceito de
Platão é a arte de usar as palavras, orais ou escritas, para se utilizar das
pessoas e com isso se promoverem. Pode-se comprovar essa verdade pelo número de
brincadeiras e de piadas jocosas que envolvem tais profissionais. Até Jonathan
Swift, no famoso livro “As Viagens de Gulliver”, se referia a eles como
profissionais hábeis “a transformar o branco em preto, e o preto no branco”,
desde que pagos para isso.
O
problema de tal concepção é que, além de simplória, ela é injusta. A primeira
razão disso é que ela diz respeito especificamente ao advogado que atua
criminalmente. Afinal, tanto no cinema como na literatura, é invariavelmente o
criminalista que se destaca. Ele aparece fazendo defesas inflamadas, instruindo
testemunhas, bolando táticas mirabolantes, tentando cooptar os jurados ou
comprar o juiz. O civilista, aquele que faz uma simples separação ou que requer
direitos sobre algum bem, nunca se destaca em tais histórias, já que a emoção é
um ingrediente forte somente para aquele outro tipo de advogado. No Brasil,
vale dizer, apenas uma quarta parte das causas é que são criminais. Importa
também perguntar o porquê de nunca haver referência ao advogado herói, aquele
que solta os que foram presos injustamente, que luta pela igualdade dos
direitos e pela democracia. Os exemplos desses profissionais são numerosos,
seja no crime ou na área cível, como Evandro Lins e Silva, Sobral Pinto,
Argemiro de Figueirêdo ou Antônio de Brito Alves.
O
outro pilar desse equívoco sobre os advogados diz respeito aos seus
constituintes. Há crimes que, por serem bárbaros ou por envolverem pessoas
famosas, criam um verdadeiro clamor na população. É comum se ouvir a indignação
das pessoas, que acham repugnante que algum advogado aceite a defesa de tais
indivíduos. De acordo com elas, sujeitos como Guilherme de Pádua, PC Farias, os
jovens que incendiaram o índio pataxó ou o juiz Nicolau seriam condenados de
imediato, sem direito a sequer defesa. Isso talvez até fosse correto se
houvesse a certeza de culpa dessas pessoas, mas a história está repleta de
casos de erros jurídicos muitas vezes ocorridos devido à pressão popular. Não
há melhor exemplo disso que o de Saco e Vanzeti e o do Capitão Dreyfus.
Independente de tudo, mesmo alguém que seja culpado tem direito a se defender.
Essa lição já dava Rui Barbosa em carta ao colega José Evaristo de Moraes,
quando dizia que até o mais vil criminoso necessita de um advogado para
defendê-lo, e que não existe desonra em fazer isso. Há, pelo contrário, honra e
coragem em defender um indivíduo assim, já que à própria sociedade interessa que
seu julgamento seja isento e parcial. Outro dia o Ministro Marco Aurélio de
Mello, presidente do STF, referindo-se a um caso polêmico, falou que foi graças
à multidão que Cristo foi condenado.
Assim,
a classe advocatícia tem sido injustiçada ao longo do tempo, já que a luta pela
cidadania tem encontrado no advogado um fiel escudeiro. A razão disso se
origina de mal entendidos e da atuação de um ou outro bacharel, que não
trabalha com o devido zelo. Apesar disso, a profissão a cada dia tem sido
melhor valorizada, tanto é que se trata da única profissão tida pela
Constituição Federal como “indispensável à administração da justiça”. Na
verdade, dizia Daniel Cavalcanti Silva em premiado trabalho *, “a
responsabilidade ética no exercício da advocacia é, em essência, um compromisso
de consciência pessoal, adquirido pelo advogado com o seu cliente e com a
sociedade”. Vale lembrar, voltando ao filme, que o protagonista, que era
inocente, só foi absolvido devido a defesa do seu advogado. Quanto ao povão,
eles costumam chacotear esses profissionais, mas em momento de agonia são os
primeiros a rogar a Virgem Maria chamando-a de “advogada nossa”. Portanto, ao
tomar para si a defesa de outro homem, o advogado toca no que há de mais
sagrado para alguém, que são os seus direitos e deveres.
*
A Ética, o Ensino Jurídico e a Alegoria da Cebola foi o segundo colocado no I
Concurso Nacional de Monografias Sobre Ética na Advocacia promovido pelo
Conselho Federal da OAB.
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