Comunicado ao mundo: Deus existe. Quem duvidar,
que ouça Milton Nascimento cantar!
Ele chega manso ao palco. Chega como se
pedisse desculpa por chegar. Chega como um guerrilheiro ou um menino do
interior de Minas chega – tudo nele é susto, é cautela.
Mas quando com eca a cantar, tudo muda,
num passe de mágica, e instaura-se uma aleluia!
Solitários do país, alegrai-vos: Milton
Nascimento está cantando.
Moça do vestido florido, que chega ao
13º andar para pular: adiai vosso solto, a vida é bela, moça, e Milton
Nascimento está cantando.
Sem-amor, sem-casa, sem-esperança,
sem-terra, todos vós: há uma luz no fim do túnel do Brasil, afinal, Milton
Nascimento está cantando.
Há uma procissão de Minas passando,
enquanto Milton Nascimento canta.
Há sinos tocando, como nas igrejas de
Minas.
Há uma beata do interior de Minas
cantando (e se realizando e se libertando), enquanto Milton Nascimento canta.
Ah, por quem canta Milton Nascimento?
Canta por mim, por meu coração pecador.
Canta por ti, por tuas quimeras.
Canta pelos sem-voz de toda espécie,
espalhados pelo mundo.
Daí que, cantando, Milton Nascimento dá
voz à beatas do interior de Minas, que vão para a missa das seis encolhidas de
frio, tão sós, tão carentes – elas e seus temores e pecados.
Mas estão glorificadas: Milton
Nascimento canta por elas.
Sua voz é rouca, é negra, recorda
senzalas, escravos, ainda hoje canta por eles, mas sua voz é livre.
Qual a cor da tua voz, Milton
Nascimento?
É negra, é branca, é vermelha, é
amarela, tem a cor dos índios teus amigos?
A voz de Milton Nascimento tem a cor de
um comício.
A cor alegre de uma passeata.
A cor de uma seresta e de um show.
Que me perdoe o sabiá do sertão, que
canta e pede chuva ao Senhor.
Que me perdoe o rouxinol e mesmo o
uirapuru, que é o pássaro da felicidade.
Que me perdoem os anjos que cantam em
coro.
Milton Nascimento canta como uma
cotovia que não aprendeu a rezar, mas não quer humilhar ninguém.
Há uma conspiração em curso (como em
Minas) quando Milton Nascimento canta.
Há um Libertas quae sera tamem acenando para nós.
Uma noite, no Mosteiro do Jerônimo, em
Lisboa, Milton Nascimento cantava para uma platéia constituída de diplomatas,
homens e mulheres de todas as línguas. Subitamente, ao meu lado, uma sueca de
cabelos louros e olhos da cor do dia nascendo cai de joelhos, e de joelhos
fica.
Outros a imitam. Eu mesmo caio de
joelhos. Desde então aprendi:
Milton Nascimento a gente tem que ouvir
com fé. Como quem reza.
Milton Nascimento, cantai por nós!
Roberto Drummond
Esse texto de Roberto Drummond foi publicado na Revista Vogue ano 1 número 1, que dedicou perfil especial ao cantor Milton Nascimento. Eu gostei tanto dessa crônica/oração que a guardei com todo carinho na gaveta onde ficaram as coisas que considerava especiais (cartas, fotografias, poemas, reportagens etc). Faz alguns meses que reencontrei o escrito do autor de "Hilda furação", e fiquei surpreso ao me emocionar com a leitura exatamente como da primeira vez. Também fiquei surpreso ao descobrir que essa belíssima homenagem a Milton não estava na Internet, daí a decisão de digitá-la e publicá-la. Essa, com certeza, é uma carta que todo fã de Bituca gostaria de ter escrito.
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