domingo, 24 de janeiro de 2010

Comentário sobre a Dedicatória


Ao ganhar de presente um livro, a primeira coisa que faço é ler a dedicatória. Às vezes a obra não me interessa, mas o oferecimento justifica a sua acolhida na minha pequena biblioteca particular.

Cheguei até a fazer aquisições em sebos somente por causa do texto que uma pessoa fazia para outra no momento de presentear. Por conta disso, passe a defender a tese (exagerada, sem dúvida) de que a dedicatória poderia ser considerada um gênero literário, pelo menos em determinados casos – afinal de contas, oferecer algo a alguém de quem se gosta ou a quem se considera por escrito parece mesmo exigir um pouco de arte, não é mesmo?

Uma dedicatória que nunca esqueci foi feito no livro “O Aleph”, do escritor argentino Jorge Luis Borges, por uma mulher (salve engano) radicada em Campina Grande chamada Cassandra Veras. No texto escrito de próprio punho e com grande estilo, a dedicante faz uma intersecção entre os contos de Borges e a obra “Alice no país das maravilhas”, do escritor britânico Lewis Carroll.

Com efeito, é inegável o diálogo entre a literatura borgiana e o estilo de Carroll, já que o fantástico e o non sense parecem caminhar de mãos dadas. É provável que Borges, enquanto estudioso da literatura britânica e da literatura fantástica de uma forma geral, tenha mesmo bebido nessa fonte.

O interessante é que eram cerca de seis ou sete páginas escritas de um canto a outro, com direito a desenhos e a poemas diretamente relacionados à temática da obra.

Com o tempo, aquele oferecimento se integrou tão bem à obra, que eu imaginei ser um prólogo feito pelo próprio escritor ou por algum parceiro seu de labuta e de escola literária, a exemplo de Adolpho Bioy Casares. É pena que em um momento de loucura, certamente influenciado pelo conteúdo dos próprios contos, eu tenha emprestado o livro.

O resultado é presumível: perdi o livro e, com ele, o engenhoso e original oferecimento. O pior de tudo é que cresci ouvindo meu pai dizer que é melhor dar do que emprestar livro, pois nesse caso pelo menos a doação é oficializada.

Lembro que em certa feita adquiri no “Mundo dos livros” a obra “Itinerário”, uma espécie de antologia de textos de Mauro Mota, apenas por causa da dedicatória. O proprietário desse sebo em Campina Grande sabia desse meu interesse e costumava separar para mim aqueles livros cujos oferecimentos destoassem do lugar comum.

Mais do que um livreiro, Marinaldo era um apaixonado por livros, e trocava qualquer venda por uma discussão a respeito dos escritores de sua preferência, como o irônico italiano Pitigrilli e o corrosivo colombiano Vargas Vila. Talvez por isso mesmo o seu negócio não esteja tão bem quanto o de outros livreiros, cujo único intuito é o vil metal.

Voltando ao livro, é claro que eu sabia que Mauro Mota foi um dos poetas brasileiros e pernambucanos mais importantes do século passado, conhecendo também parte de sua relevante obra poética. Contudo, o que me chamou a atenção foi a dedicatória feita no livro por Álvaro Luiz Guedes a Margareth Gomes Germano, cuja transcrição está em seguida:

Carnaval

Para Margareth Gomes Germano

Na paz burguesa do bairro burguês
as casas testemunham o tempo coagulado
Móveis lustres prataria quinquilharia
flutuam sobre os indivíduos
A vida estacionada
imagina o mundo
um bairro maior.

(fevereiro/80)

Álvaro Luiz Guedes


Trata-se de um belíssimo poema, redigido provavelmente sob a influência dos embates ideológicos e das teorias sociais em voga no Brasil no começo da década de oitenta. Outro possível indicativo de sua orientação política foi a cor vermelha forte utilizada por Álvaro Luíz Guedes, de quem eu só tinha como referência o fato de o Centro Acadêmico de Letras da Universidade Federal de Campina Grande (então campus II da Universidade Federal da Paraíba) – curso que eu fazia à época – ter o seu nome.

Segundo as informações que consegui, Álvaro era poeta acadêmico de Letras, tendo falecido muito jovem sem publicar um único livro. Talvez poemas esparsos e perdidos em sebos ou em bibliotecas empoeiradas sejam o único rastro desse poeta talentoso, cuja passagem para o outro mundo ocorreu tão precocemente.

Faz alguns meses eu li para a minha filha o livro “O menino maluquinho”, de autoria de Ziraldo, e me surpreendi ao vê-la com o mesmo encantamento diante da leitura que tive há vinte e sete anos. A obra foi oferecida a mim por minha mãe com o seguinte texto: “Meu filho, este livro é seu. 1982”.

Uma dedicatória tão singela quanto verdadeira, como normalmente são as coisas mais importantes da vida. A propósito, esse e outros livros do cartunista e escritor certamente fizeram a minha infância mais feliz, tanto que sempre tive vontade de agradecer pessoalmente a ele por seus livros e por seus ricos personagens.

É claro que também me agradam certas dedicatórias feitas pelos autores, seja nos livros de Direito ou de Literatura. É o caso do oferecimento que Jorge Luis Borges fez a sua companheira María Kodama no livro “Os conjurados”, lançado na Argentina em 1985:

É seu este livro, María Kodama. Será preciso dizer-lhe que esta inscrição engloba os crepúsculos, os veados de Nara, a noite solitária e as populosas manhãs, as ilhas partilhadas, os mares, os desertos e os jardins, o que o esquecimento perde e a memória transforma, a alta voz do muezim, a morte do Hawkwood, os livros e as estampas?


Só podemos dar o que já demos. Só podemos dar o que já é do outro. Neste livro estão as coisas que sempre foram suas. O mistério que é uma dedicatória, uma entrega de símbolos!


J.L.B.

Essa é a versão lusitana do texto, sendo a tradução brasileira ainda mais bonita. De qualquer forma, o importante é destacar que o ato de dedicar um livro ou um texto a alguém é uma forma de perenizar um sentimento, como se fosse uma espécie de fotografia sentimental de um instante.

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