O artigo abaixo foi escrito pelo professor Jader Nunes, ex-Reitor da Universidade Federal da Paraíba, e versa sobre a polêmica da investigação dos crimes de tortura ocorridos durante o regime militar iniciado em 1964. Trata-se de um posicionamento coerente e sensato a respeito do tema, o qual realmente tem sido distorcido por parte da imprensa brasileira, e em particular pelos órgãos de imprensa que apoiaram e se beneficiaram da ditadura.
Para mim é indiscutível a necessidade de se apurar os desmandos ocorridos durante o último regime militar brasileiro, já que o próprio Estado foi usado como instrumento para o cometimento de verdadeiros crimes contra a humanidade. Mais do que exatamente punir, é preciso esclarecer os fatos enquanto ainda houver pessoas envolvidas vivas, como torturadores, torturados, familiares e amigos, dentro do conceito de justiça restaurativa, a exemplo do que ocorreu na África do Sul:
MEMÓRIA: A PRESENÇA DO PASSADO
No último dia treze de dezembro – data que ficou marcada na história do Brasil pela decretação, em 1968, do famigerado Ato Institucional nº5 -, o ministro Paulo de Tarso Vannuchi, secretário nacional dos Direitos Humanos, anunciou a promulgação de decreto presidencial instituindo o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), com destaque para uma Comissão da Verdade e da Reconciliação, e informou que o governo vai encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei, a fim de que o Parlamento possa debater e deliberar conclusivamente sobre a matéria.
O tema deflagrou uma enorme polêmica dentro e fora do governo e colocou o Palácio do Planalto numa enrascada política.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes da Forças Armadas ameaçaram pedir demissão porque o PNDH 3 estaria modificando a Lei de Anistia, limitando-se a apurar a participação de militares e demais agentes públicos em torturas e assassinatos de presos políticos, sem investigar os excessos praticados por ativistas de esquerda que pegaram em armas no combate ao regime militar.
É que, ao ser promulgada em 1979 – em plena ditadura militar -, a Lei de Anistia contemplou também o que eufemisticamente foi denominado de “crimes conexos”. Ou seja, precisamente as atrocidades efetuadas pelos agentes da repressão que, a partir daquele ato, ficaram isentos de qualquer julgamento ou punição.
O ministro Vannuchi, por outro lado, afirmou que a Comissão da Verdade se inspira nas comissões criadas na África do Sul e em países da América Latina que foram governados por ditaduras, como Chile, Argentina e Uruguai. E que sua atribuição precípua é apurar e reunir informações que promovam o esclarecimento sobre as violações de direitos humanos no Brasil. Acrescentou que a decisão de punir os acusados é do Poder Judiciário e não do Executivo.
As entidades defensoras dos direitos humanos, por sua vez, exigem a responsabilização dos torturadores, assassinos e seus mandantes pelos crimes praticados durante a ditadura militar. Consideram que a não responsabilização de crimes de torturas, assassinatos, violência sexual, saques a residências e desaparecimento forçados de militantes políticos contribui para o enfraquecimento de nossas instituições democráticas e para o desrespeito aos valores humanos mais caros à Humanidade. Para tanto, entendem que é fundamental a abertura de todos os arquivos da repressão política e que, após décadas dos fatos ocorridos, impedir o acesso público a esses arquivos é uma afronta à sociedade brasileira e uma clara tentativa de manter impunes os executores da tortura e seus mandantes. Defendem que os crimes de lesa humanidade praticados durante o regime de Terrorismo de Estado são imprescritíveis e imperdoáveis. E consideram que os militantes que participaram da luta armada e sobreviveram já foram severamente penalizados com perseguições, prisões e torturas.
Toda essa celeuma obrigou o governo a recuar. No dia treze deste mês, o Presidente da República decidiu rever as atribuições da Comissão da Verdade. O trecho sobre delitos de agentes da repressão teve suprimida a expressão “repressão política”, para englobar qualquer conflito no período, e um grupo de trabalho vai discutir como fazer a comissão funcionar sem arranhar a Lei de Anistia.
O debate continua e promete novos desdobramentos. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) compreende, por exemplo, que a Constituição de 1988 mudou tudo e eliminou a proteção que a lei dava aos torturadores e, em outubro do ano passado, entrou com uma ação para que o Supremo Tribunal Federal (STF) declare se a lei se estende ou não aos “crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar.”
Há poucos dias, a revista Isto É, em sua edição de nº2098, publicou que o presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, vai lançar a “Campanha pela Memória e pela Verdade”, que pretende contribuir para o debate nacional sobre a necessidade de punir quem cometeu crimes de tortura nos anos de chumbo. Segundo ele – que “defende com veemência a punição aos torturadores da ditadura militar” -, de acordo com a notícia, “a OAB, verbalizando os melhores sentimentos da Nação, não aceita essa extorsão da democracia”.
Mas esse debate já está sendo alvo de um viés orquestrado pelos grandes meios de comunicação. Com base no fato de que a maioria da população brasileira – os que têm menos de quarenta anos – não vivenciou os horrores do período da ditadura, a mudança de foco na abordagem temática da tortura pode ser assimilada sem maiores questionamentos: como a tortura não foi uma exclusividade do regime militar e continua a ser uma prática comum no Brasil, com os abusos sendo hoje efetuados por policiais, agentes penitenciários etc, e suas vítimas os presos majoritariamente mais pobres, a prioridade governamental, de acordo com essa ótica, deveria ser o combate à impunidade dos que agem de forma truculenta nas prisões.
Tal enfoque é obviamente uma mistificação grosseira e escamoteia um aspecto central da questão: a impunidade dos agentes do Estado que torturaram presos políticos foi um fator determinante para que os maus tratos impostos a prisioneiros acusados de cometer crimes comuns continuem a ser uma realidade endêmica nas prisões brasileiras.
Um exemplo recente dessa mudança de eixo é a matéria sobre o tema publicada por uma revista de ampla circulação nacional. Nela é dito que “Boa parte da geração de militantes de 40 anos atrás assumiu o poder no País e, agora, busca a Justiça pelos abusos que sofreu. Infelizmente, as vítimas dos anos de chumbo concentram suas energias em ações revisionistas em vez de lutar com afinco para que o mesmo sofrimento por que passaram não seja repetido com tanta frequência e impunidade hoje.” E acrescenta: “A diferença agora é que os torturados não são mais estudantes politizados, que conhecem seus direitos e têm voz ativa nos meios de comunicação.”
A conclusão do texto é emblemática: “E o governo deveria, além de impedir a tortura, tratar as vítimas de hoje com o mesmo apreço que trata as vítimas de um passado que insiste em se repetir no presente. Até agora, pelo menos, não isso o que se tem visto no Brasil.” Faltou pouco para que fosse proclamada a absolvição dos torturadores da ditadura.
A centralidade do debate deve ser outra. Para além da controvérsia sobre a punição aos algozes da repressão política - que no Estado Democrático de Direito é prerrogativa exclusiva da Justiça -, a revelação do que ocorreu nos porões da ditadura militar e a identificação dos agentes públicos repressores é condição indispensável para a completa reconciliação nacional e a superação desse tipo de barbárie acobertada pelo Estado.
Tudo isso precisa ser conhecido sem reservas e sem censuras. Nada justifica o silêncio sobre a brutal violação dos direitos humanos praticada durante um regime ilegal e ilegítimo. Nada justifica a omissão de fatos tão graves. E a apuração desses fatos deverá contribuir para indicar o caminho para uma verdadeira pacificação de nossa sociedade.
Sem ódio. Sem revanchismo. Sem espírito de vingança. Caso contrário, esse passado tenebroso e não resolvido de nosso País continuará a assombrar as novas gerações.
Como disse o poeta gaúcho Mário Quintana: “O passado não conhece o seu lugar; está sempre presente.”
Para mim é indiscutível a necessidade de se apurar os desmandos ocorridos durante o último regime militar brasileiro, já que o próprio Estado foi usado como instrumento para o cometimento de verdadeiros crimes contra a humanidade. Mais do que exatamente punir, é preciso esclarecer os fatos enquanto ainda houver pessoas envolvidas vivas, como torturadores, torturados, familiares e amigos, dentro do conceito de justiça restaurativa, a exemplo do que ocorreu na África do Sul:
MEMÓRIA: A PRESENÇA DO PASSADO
No último dia treze de dezembro – data que ficou marcada na história do Brasil pela decretação, em 1968, do famigerado Ato Institucional nº5 -, o ministro Paulo de Tarso Vannuchi, secretário nacional dos Direitos Humanos, anunciou a promulgação de decreto presidencial instituindo o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), com destaque para uma Comissão da Verdade e da Reconciliação, e informou que o governo vai encaminhar ao Congresso Nacional um projeto de lei, a fim de que o Parlamento possa debater e deliberar conclusivamente sobre a matéria.
O tema deflagrou uma enorme polêmica dentro e fora do governo e colocou o Palácio do Planalto numa enrascada política.
O ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os comandantes da Forças Armadas ameaçaram pedir demissão porque o PNDH 3 estaria modificando a Lei de Anistia, limitando-se a apurar a participação de militares e demais agentes públicos em torturas e assassinatos de presos políticos, sem investigar os excessos praticados por ativistas de esquerda que pegaram em armas no combate ao regime militar.
É que, ao ser promulgada em 1979 – em plena ditadura militar -, a Lei de Anistia contemplou também o que eufemisticamente foi denominado de “crimes conexos”. Ou seja, precisamente as atrocidades efetuadas pelos agentes da repressão que, a partir daquele ato, ficaram isentos de qualquer julgamento ou punição.
O ministro Vannuchi, por outro lado, afirmou que a Comissão da Verdade se inspira nas comissões criadas na África do Sul e em países da América Latina que foram governados por ditaduras, como Chile, Argentina e Uruguai. E que sua atribuição precípua é apurar e reunir informações que promovam o esclarecimento sobre as violações de direitos humanos no Brasil. Acrescentou que a decisão de punir os acusados é do Poder Judiciário e não do Executivo.
As entidades defensoras dos direitos humanos, por sua vez, exigem a responsabilização dos torturadores, assassinos e seus mandantes pelos crimes praticados durante a ditadura militar. Consideram que a não responsabilização de crimes de torturas, assassinatos, violência sexual, saques a residências e desaparecimento forçados de militantes políticos contribui para o enfraquecimento de nossas instituições democráticas e para o desrespeito aos valores humanos mais caros à Humanidade. Para tanto, entendem que é fundamental a abertura de todos os arquivos da repressão política e que, após décadas dos fatos ocorridos, impedir o acesso público a esses arquivos é uma afronta à sociedade brasileira e uma clara tentativa de manter impunes os executores da tortura e seus mandantes. Defendem que os crimes de lesa humanidade praticados durante o regime de Terrorismo de Estado são imprescritíveis e imperdoáveis. E consideram que os militantes que participaram da luta armada e sobreviveram já foram severamente penalizados com perseguições, prisões e torturas.
Toda essa celeuma obrigou o governo a recuar. No dia treze deste mês, o Presidente da República decidiu rever as atribuições da Comissão da Verdade. O trecho sobre delitos de agentes da repressão teve suprimida a expressão “repressão política”, para englobar qualquer conflito no período, e um grupo de trabalho vai discutir como fazer a comissão funcionar sem arranhar a Lei de Anistia.
O debate continua e promete novos desdobramentos. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) compreende, por exemplo, que a Constituição de 1988 mudou tudo e eliminou a proteção que a lei dava aos torturadores e, em outubro do ano passado, entrou com uma ação para que o Supremo Tribunal Federal (STF) declare se a lei se estende ou não aos “crimes comuns praticados por agentes da repressão contra opositores políticos durante o regime militar.”
Há poucos dias, a revista Isto É, em sua edição de nº2098, publicou que o presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, vai lançar a “Campanha pela Memória e pela Verdade”, que pretende contribuir para o debate nacional sobre a necessidade de punir quem cometeu crimes de tortura nos anos de chumbo. Segundo ele – que “defende com veemência a punição aos torturadores da ditadura militar” -, de acordo com a notícia, “a OAB, verbalizando os melhores sentimentos da Nação, não aceita essa extorsão da democracia”.
Mas esse debate já está sendo alvo de um viés orquestrado pelos grandes meios de comunicação. Com base no fato de que a maioria da população brasileira – os que têm menos de quarenta anos – não vivenciou os horrores do período da ditadura, a mudança de foco na abordagem temática da tortura pode ser assimilada sem maiores questionamentos: como a tortura não foi uma exclusividade do regime militar e continua a ser uma prática comum no Brasil, com os abusos sendo hoje efetuados por policiais, agentes penitenciários etc, e suas vítimas os presos majoritariamente mais pobres, a prioridade governamental, de acordo com essa ótica, deveria ser o combate à impunidade dos que agem de forma truculenta nas prisões.
Tal enfoque é obviamente uma mistificação grosseira e escamoteia um aspecto central da questão: a impunidade dos agentes do Estado que torturaram presos políticos foi um fator determinante para que os maus tratos impostos a prisioneiros acusados de cometer crimes comuns continuem a ser uma realidade endêmica nas prisões brasileiras.
Um exemplo recente dessa mudança de eixo é a matéria sobre o tema publicada por uma revista de ampla circulação nacional. Nela é dito que “Boa parte da geração de militantes de 40 anos atrás assumiu o poder no País e, agora, busca a Justiça pelos abusos que sofreu. Infelizmente, as vítimas dos anos de chumbo concentram suas energias em ações revisionistas em vez de lutar com afinco para que o mesmo sofrimento por que passaram não seja repetido com tanta frequência e impunidade hoje.” E acrescenta: “A diferença agora é que os torturados não são mais estudantes politizados, que conhecem seus direitos e têm voz ativa nos meios de comunicação.”
A conclusão do texto é emblemática: “E o governo deveria, além de impedir a tortura, tratar as vítimas de hoje com o mesmo apreço que trata as vítimas de um passado que insiste em se repetir no presente. Até agora, pelo menos, não isso o que se tem visto no Brasil.” Faltou pouco para que fosse proclamada a absolvição dos torturadores da ditadura.
A centralidade do debate deve ser outra. Para além da controvérsia sobre a punição aos algozes da repressão política - que no Estado Democrático de Direito é prerrogativa exclusiva da Justiça -, a revelação do que ocorreu nos porões da ditadura militar e a identificação dos agentes públicos repressores é condição indispensável para a completa reconciliação nacional e a superação desse tipo de barbárie acobertada pelo Estado.
Tudo isso precisa ser conhecido sem reservas e sem censuras. Nada justifica o silêncio sobre a brutal violação dos direitos humanos praticada durante um regime ilegal e ilegítimo. Nada justifica a omissão de fatos tão graves. E a apuração desses fatos deverá contribuir para indicar o caminho para uma verdadeira pacificação de nossa sociedade.
Sem ódio. Sem revanchismo. Sem espírito de vingança. Caso contrário, esse passado tenebroso e não resolvido de nosso País continuará a assombrar as novas gerações.
Como disse o poeta gaúcho Mário Quintana: “O passado não conhece o seu lugar; está sempre presente.”
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