terça-feira, 8 de outubro de 2013

Coca-Cola


Certo dia um militar aposentado encontrou um rato dentro de uma garrafa de Coca-Cola comprada em uma padaria, na esquina de sua casa. Após conseguir um relatório técnico do laboratório da universidade comprovando que o animal peçonhento foi colocado dentro da garrafa ainda na fábrica, o aposentado levou o assunto à imprensa e à Justiça. Apesar dos desmentidos, o caso ganhou grande repercussão porque a empresa não conseguiu desconstituir imediatamente a prova técnica apresentada.

Na mesma semana um artista plástico denunciou que ficou inválido por ter ingerido o refrigerante contaminado com urina de rato. Ele apresentou laudos médicos comprovatórios e o caso também tomou repercussão nacional.

Coincidência ou não, a partir daí começaram a surgir inúmeras denúncias semelhantes em todos os recantos do país. Praticamente todos os dias as pessoas registravam reclamações sobre o assunto. Ora eram ratos inteiros, ora eram apenas pedaços deles que eram encontrados.

Em menos de três meses já havia mais de mil reclamações diferentes tramitando nos órgãos públicos. Em alguns casos a fraude era nítida, em outros a divergência técnica requeria a realização de exames e testes. O fato é que, embora a empresa contestasse tais procedimentos, em uma menor parte dos casos a contaminação foi comprovada por meio de perícia especializada.

A divulgação desses resultados fez com que o número de denúncias aumentasse de forma significativa. Além de ratos, começaram a encontrar também baratas, besouros, escorpiões e cobras, dentre outros animais peçonhentos. Houve também relatos sobre dedos humanos ou cadáveres de animais, como cachorros, coelhos e gatos, em estado de putrefação encontrados na garrafa.

Os órgãos públicos capacitaram equipes e criaram divisões administrativas com o único intuito de cuidar do problema. Enquanto isso a empresa passou a responder a um número tão grande de processos administrativos e judiciais, que sempre era necessário contratar mais e mais advogados e peritos técnicos.

A cada dia a idéia de fechar as fábricas e de proibir a venda do produto despontava com mais força. Foram abaixo-assinados e manifestações públicas fazendo tal exigência às autoridades. Por conta da pressão dos Estados-Unidos, essas medidas drásticas não foram acatadas, mas determinou que toda a linha de produção das fábricas seja inspecionada e vigiada dia e noite.

Começaram a surgir também reclamações semelhantes nos países vizinhos, e depois em países mais distantes. O problema atingiu proporções mundiais, e em alguns lugares a venda do refrigerante chegou mesmo a ser proibida. Em todo o planeta as vendas despencaram abruptamente, e os analistas econômicos passaram a prever a derrocada da companhia nos próximos meses. Prova dessa crise é que em alguns países a empresa entrou em processo de falência ou de recuperação judicial.

Ocorre que nesse período começara a aparecer notícias diferentes sobre coisas achadas nas garrafas e latas de Coca-Cola. Seriam objetos de todas as ordens: novos, seminovos ou antigos, bem ou mal conservados, valiosos, baratos ou sem valor, importantes, supérfluos ou inúteis. Por exemplo, uma empregada doméstica achou um cortador de unhas seminovo. Um lutador de jiu-jitsu encontrou uma adaga japonesa. Um motorista de ônibus foi presenteado com um relógio caro. Um pastor protestante descobriu um narguilé turco.

A princípio a companhia negou veementemente tais descobertas, alegando ter total controle do seu processo produtivo. Ela continuou sustentando a tese de que tudo isso era uma estratégia dos adversários, especialmente a Pepsi-Cola, no intuito de tomar o seu espaço no mercado, uma vez que em momento algum se verificou a ocorrência de tais fenômenos nas bebidas concorrentes.

O Poder Público corroborou a tese da empresa, ao justificar que toda a linha de produção estava sendo monitorada dia e noite sem qualquer interrupção, mesmo durante as férias, feriados ou finais de semana. De mais a mais, depois de algum tempo as próprias Forças Armadas passaram a fazer a fiscalização, pelo menos na maioria dos países.

A despeito disso, novos objetos foram sendo cada vez mais encontrados. Anéis, aparelhos de telefonia celular, bolas de gude, bonecos de plástico, bisturis, braceletes, canetas, cartas de amor, cartões de crédito, charutos cubanos, chocolates, computadores de mão, dentaduras, espelhos, frisos, garfos de metal, incensos, imagens de santos católicos, mescalinas, moedas, lampiões, livros, lunetas, óculos, palitos de marfim, pedras, relicários, revolveres, sapatos de criança, sextantes, tesouras e outras coisas eram comumente achadas. Houve quem achasse bilhetes premiados da loteria, dobrões espanhóis, fórmulas para cosméticos e medicamentos, livros autografados de Edgar Allan Poe e Jorge Luís Borges, pedras raras e orações medievais para a prática de exorcismo, dentre outras preciosidades.

É claro que tanto na imprensa nacional quanto na internacional nenhum outro assunto despertou tanta atenção. Em vista disso, de um momento para outro as vendas do refrigerante dispararam. As pessoas queriam saber com que surpresa poderiam se deparar dentro daqueles recipientes. Mesmo com o aumento significativa da produção, o preço do refrigerante aumentou absurdamente em razão da procura. Ao passo que as fábricas desativadas voltaram a funcionar, as que estavam em operação passaram a fazer ampliações. O valor das ações da companhia atinge um percentual tão alto que a própria Bolsa de Valores decide atribuir a elas a categoria de bem inestimável, não passível de negociação.

A aquisição passou a ser feita por meio de reserva prévia, sob o rígido controle do Estado. Paralelamente apareceu o mercado negro, com fornecedores que dispunham do líquido negro para entrega imediata sob o pagamento de forte ágio. Não raramente as disputas pelo produto chegavam as vias de fato. Muitas eram as famílias que trocavam itens da cesta básica por isso. Com efeito, podia faltar qualquer coisa, menos a Coca-Cola!

Em pouco tempo, tomar a bebida coletivamente se transformou em uma instituição nacional, e depois internacional. Os jovens se reuniam para bebê-la em grupo, de maneira que a garrafa passavam de mão em mão e de boca em boca. Nas famílias esse se tornou um momento especial, quando todos se reuniam para sorver aquela bebida. Em inúmeros casos as pessoas até faziam orações ou realizavam meditações em torno da garrafa ou da lata antes de abri-la. Houve boatos sobre eventuais efeitos alucinógenos após a ingestão daquele verdadeiro soma.

As universidades e demais instituições oficiais de pesquisa começaram a divulgar os primeiros estudos que provavam que Coca-Cola faz bem à saúde. Tomá-la era bom para o cérebro, o coração, os olhos, os pulmões e os rins, sendo tudo comprovado cientificamente. Enquanto os homens atribuíam ao liquido vigor sexual, as mulheres acreditavam que ele melhorava consideravelmente a textura do cabelo e da pele. Um cientista indiano atestou que a substituição da agua pelo refrigerante era o melhor para a saúde física e mental dos seres humanos. É logico que não houve surpresas quando ele foi agraciado com o Premio Nobel da Medicina.




Cabedelo/PB, 6 de outubro de 2013.

2 comentários:

  1. Prof. Talden, encontrei seu blog por acaso e achei essa crônica da coca-cola sensacional! Lembrei de um texto que fiz 10 anos atrás no meu falecido blog. Se quiser dar uma olhadinha, eis o link: http://www.criaturadocil.blogger.com.br/2003_10_01_archive.html
    É o segundo post de cima pra baixo ("O Palindromista")

    ResponderExcluir
  2. Excelentes textos, Luísa. Parabéns pelo domínio da escrita. Não devia ter parado com o blog.

    ResponderExcluir