terça-feira, 25 de novembro de 2014

A Bailarina e o Beija-Flôr



Naquele final de tarde a claridade do dia ao se despedir da Terra espalhou feliz o lilás por todo o horizonte. Sentada no banco de uma praça, uma menina de cabelos castanhos e longos e de olhos escuros contemplava o entardecer. Ela era uma bailarina e estava passado por ali ao acaso, quando resolveu parar para observar um pouco a vida. Homens e mulheres caminhando para as mais variadas direções, crianças brincando em gangorras e escorregos, jovens casais de namorados, alguns adolescentes fumando cigarros provavelmente escondidos dos pais, um sorridente pipoqueiro, um vendedor de algodão-doce, três hippies vendendo artesanato — ela assistia a tudo aquilo como se fosse a um filme ou a uma peça de teatro.

Ao modo de ver da bailarina a vida era realmente uma grande dança. Qualquer pessoa em cada mínimo gesto, seja ao falar, ao andar, ao se sentar, ao pensar, ao dormir ou ao amar, imprime à memória do universo um ritmo, uma velocidade ou um tom que lhe é peculiar. Embora também nunca lhe tivessem dito, ela sabia que as estações, as cores, as coisas, as plantas e os animais também seguiam uma coreografia própria. Até mesmo os planetas bailam em torno do sol, através dos seus movimentos de rotação e translação, repetindo seqüências que povos antigos executavam ao redor de uma fogueira. Todavia, ela imaginava que talvez pensasse aquilo somente pelo fato de ser uma bailarina, afinal o mundo é a extensão do mundo de cada indivíduo. Para um poeta, por exemplo, em qualquer momento se desdobra um poema, para um artista plástico o cotidiano é uma seqüência ininterrupta de manchas e de pontos, para um filósofo cada acontecimento propõe uma indagação ainda que sem resposta possível.

Nesse exato instante ela se deu conta que um beija-flor, em tonalidades azul e verde, pairava no ar quase ao seu lado, como se hesitasse em pousar. A bailarina teve a impressão de que ele a observava, pois os olhos do pássaro reluziam humanos e profundos. Depois de alguns minutos ela teve a intuição de que conseguiria se comunicar mentalmente com o beija-flor, caso o desejasse. É que ela se lembrou de ter lido em certo livro que um ser humano poderia se integrar à natureza ao ponto de poder conversar com os grãos de areia ou com as gotas da chuva. Assim, ela decidiu tentar entabular com o passarinho a seguinte conversa:

— Ah, Beija-Flor, gostaria que tu pudesses me entender, para eu te ensinar o quão bonito é o meu ofício de bailarina!

— Bailarina, eu te compreendo muito bem e até concordo com as tuas divagações sobre o dançar, respondeu o beija-flor para a surpresa da bailarina. Na verdade, continuou ele, os nossos trabalhos são muito parecidos. Quando pairo no ar para beijar uma flor e retirar o seu néctar, minhas asas bailam de um lado para o outro e meu bico se requebra em um bonito vai-e-vém. Ao atravessar o azul do céu, embalado no vento como quem segue o ritmo de uma canção, o que faço também é dançar.

— Já tu, prosseguiu ele, que pensas ser bailarina, és na realidade um passarinho, provavelmente um beija-flor. No instante em que teus pés deslizam sobre o palco, com a delicadeza de uma boneca de porcelana ao pisar um cristal, tu consegues facilmente voar. Teu corpo atinge um estado em que a alma o transcende, de modo que de um momento para outro tu te vês sobrevoando outras paisagens ou até dimensões nunca antes por ti imaginadas. É nessa hora que consegues beijar algumas das flores muito preciosas que guardas dentro de ti mesma.


No momento em que a bailarina olhava fascinada para o pássaro, ele bateu asas e voou. Ao prestar atenção ao vôo de despedida do beija-flor, talvez ainda duvidando de que ele lhe tivesse dito aquelas palavras, a bailarina percebeu que ele bailava ao invés de voar. Alguns minutos depois, ao se levantar do banco daquela praça no intuito de voltar para casa, ela teve a impressão de não estar tocando o chão, pois seu corpo estaria levitando. 



* Este artigo foi escrito provavelmente em 2002, e foi publicado no Diário do Nordeste (Fortaleza/CE) e na Folha de Pernambuco (Recife/PE).

domingo, 9 de novembro de 2014

Quem poderá nos salvar? Pequeno comentário sobre a crise hídrica brasileira


Talvez a discussão mais relevante do país seja a escassez hídrica, que está longe de ser um problema apenas de São Paulo. Vários outros Estados estão à beira de um racionamento, ao menos em determinadas regiões. No entanto, essa questão praticamente não foi discutida nos debates eleitorais deste ano, seja de âmbito nacional ou estadual – e quando foi, vale destacar, o debate nem sempre ocorreu de forma honesta. A irresponsabilidade organizada é generalizada nos três níveis federativos, e especialmente no âmbito dos Estados, que na maioria das situações são os responsáveis pelo sistema de abastecimento público e tratamento de esgoto. Só recentemente é que parcela menor da imprensa passou a abordar o tema com a necessária responsabilidade. Embora a legislação brasileira em matéria de recursos hídricos seja de maneira geral avançada e disponha de instrumentos interessantes, na maior parte do país predomina a falta de efetividade. Realmente, a Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n. 9.433/97) mal saiu do papel na maior parte das nossas bacias hidrográficas. O problema é que nós não estamos mais em vias de um colapso, mas já no próprio início do colapso. E, a despeito disso, nem mesmo com esse quadro aterrorizante o planejamento hídrico é levado a sério. Até parece que nós estamos esperando um milagre dos céus.