Naquele final de tarde a claridade do
dia ao se despedir da Terra espalhou feliz o lilás por todo o horizonte.
Sentada no banco de uma praça, uma menina de cabelos castanhos e longos e de
olhos escuros contemplava o entardecer. Ela era uma bailarina e estava passado
por ali ao acaso, quando resolveu parar para observar um pouco a vida. Homens e
mulheres caminhando para as mais variadas direções, crianças brincando em
gangorras e escorregos, jovens casais de namorados, alguns adolescentes fumando
cigarros provavelmente escondidos dos pais, um sorridente pipoqueiro, um
vendedor de algodão-doce, três hippies vendendo artesanato — ela assistia a
tudo aquilo como se fosse a um filme ou a uma peça de teatro.
Ao modo de ver da bailarina a vida era
realmente uma grande dança. Qualquer pessoa em cada mínimo gesto, seja ao
falar, ao andar, ao se sentar, ao pensar, ao dormir ou ao amar, imprime à
memória do universo um ritmo, uma velocidade ou um tom que lhe é peculiar. Embora
também nunca lhe tivessem dito, ela sabia que as estações, as cores, as coisas,
as plantas e os animais também seguiam uma coreografia própria. Até mesmo os
planetas bailam em torno do sol, através dos seus movimentos de rotação e
translação, repetindo seqüências que povos antigos executavam ao redor de uma
fogueira. Todavia, ela imaginava que talvez pensasse aquilo somente pelo fato
de ser uma bailarina, afinal o mundo é a extensão do mundo de cada indivíduo.
Para um poeta, por exemplo, em qualquer momento se desdobra um poema, para um
artista plástico o cotidiano é uma seqüência ininterrupta de manchas e de
pontos, para um filósofo cada acontecimento propõe uma indagação ainda que sem
resposta possível.
Nesse exato instante ela se deu conta
que um beija-flor, em tonalidades azul e verde, pairava no ar quase ao seu
lado, como se hesitasse em
pousar. A bailarina teve a impressão de que ele a observava,
pois os olhos do pássaro reluziam humanos e profundos. Depois de alguns minutos
ela teve a intuição de que conseguiria se comunicar mentalmente com o
beija-flor, caso o desejasse. É que ela se lembrou de ter lido em certo livro
que um ser humano poderia se integrar à natureza ao ponto de poder conversar
com os grãos de areia ou com as gotas da chuva. Assim, ela decidiu tentar
entabular com o passarinho a seguinte conversa:
— Ah, Beija-Flor, gostaria que tu
pudesses me entender, para eu te ensinar o quão bonito é o meu ofício de
bailarina!
— Bailarina, eu te compreendo muito bem
e até concordo com as tuas divagações sobre o dançar, respondeu o beija-flor
para a surpresa da bailarina. Na verdade, continuou ele, os nossos trabalhos
são muito parecidos. Quando pairo no ar para beijar uma flor e retirar o seu
néctar, minhas asas bailam de um lado para o outro e meu bico se requebra em um
bonito vai-e-vém. Ao atravessar o azul do céu, embalado no vento como quem
segue o ritmo de uma canção, o que faço também é dançar.
— Já tu, prosseguiu ele, que pensas ser
bailarina, és na realidade um passarinho, provavelmente um beija-flor. No
instante em que teus pés deslizam sobre o palco, com a delicadeza de uma boneca
de porcelana ao pisar um cristal, tu consegues facilmente voar. Teu corpo
atinge um estado em que a alma o transcende, de modo que de um momento para
outro tu te vês sobrevoando outras paisagens ou até dimensões nunca antes por
ti imaginadas. É nessa hora que consegues beijar algumas das flores muito
preciosas que guardas dentro de ti mesma.
No momento em que a bailarina olhava
fascinada para o pássaro, ele bateu asas e voou. Ao prestar atenção ao vôo de
despedida do beija-flor, talvez ainda duvidando de que ele lhe tivesse dito
aquelas palavras, a bailarina percebeu que ele bailava ao invés de voar. Alguns
minutos depois, ao se levantar do banco daquela praça no intuito de voltar para
casa, ela teve a impressão de não estar tocando o chão, pois seu corpo estaria
levitando.
* Este artigo foi escrito provavelmente em 2002, e foi publicado no Diário do Nordeste (Fortaleza/CE) e na Folha de Pernambuco (Recife/PE).