domingo, 13 de fevereiro de 2011

"A Medida de Shakespeare" - Marcelo Alves Dias de Souza


O artigo intitulado "A medida de Shakespeare", de autoria do Procurador da República Marcelo Alves Dias de Souza e abaixo transcrito, versa sobre a relatividade do conceito de justiça e a consequente dificuldade de identificar na prática o que é ou não justo em um mundo cheio de interesses e de pontos-de-vistas diferentes. É interessante o diálogo que o autor faz entre esse debate tão antigo quanto atual para os operadores do Direito e a peça "Medida por medida", do dramaturgo inglês William Shakespeare. Eis o texto, que foi publicado no jornal "A Tribuna do Norte", da capital potiguar, no dia 13 de fevereiro do corrente ano:

Muitas vezes, diante de um caso mais complicado, acho-me pensando: “Aqui, qual é a medida certa do Direito (ou da Justiça, se desejamos ser mais precisos)? E como posso chegar a essa medida?”. O fato é que, se existe uma régua mágica para tanto, ainda não fui apresentado a ela. E toda vez que me vejo nesse dilema, inconscientemente vem-me à cabeça a peça “Medida por Medida” (1604) de Shakespeare (1564-1616), que é frequentemente considerada, juntamente com “O Mercador de Veneza” (1597), uma das duas peças marcadamente “jurídicas” do grande escritor (ver “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal”, por Daniel J. Kornstein, 2005).

É bem verdade que as peças de Shakespeare, sob muitos aspectos, são difíceis de ser classificadas. Como disse Coleridge (se a memória não me falha, já que a essa hora da noite, recuso-me a consultar qualquer coisa que não esteja já em minhas mãos), a obra de Shakespeare transcende época e lugar e não pertence a qualquer religião, filosofia ou profissão (a dos promotores, dos juízes e assemelhados, inclusive, queiram eles ou não). Mas é quase certo ser “Medida por Medida” (geralmente classificada como comédia, mas tida, nesse ponto, como uma das três peças problemáticas do cânon Shakespeareano) a peça que melhor nos apresenta a visão de Shakespeare sobre Direito e Justiça. E para tanto comprovar, basta ver o destaque que também é dado a essa peça em “Law & Literature” (por Maria Aristodemou, 2007) e “Shakespeare and the Law” (editado por Paul Raffield e Gary Watt, 2008), que, não precisava nem dizer, já quase dormindo, só consulto por estarem em minhas mãos.

“Medida por Medida”, já encenada um sem número de vezes na Inglaterra e fora dela, tem o seguinte enredo: o Duque de Viena, preocupado com a frouxidão das leis e a corrupção generalizada, anuncia que irá deixar a cidade temporariamente (embora continue ali disfarçado de frade) e põe no poder seu homem de confiança, Ângelo, conhecido pela rigidez de conduta. Ângelo ordena o fechamento de todas as casas de prostituição e também condena à morte Cláudio apenas por haver este engravidado sua noiva Julieta. A irmã de Cláudio, a casta freira Isabela, vai interceder junto a Ângelo em favor do irmão que espera o dia da execução. Ângelo apaixona-se e propõe perdoar Cláudio se tiver Isabela em sua cama. Sabedor de tudo, o Duque/frade participa de uma trama para enganar Ângelo, fazendo-o dormir com Mariana, pensando ser ela Isabela. Ao final, o Duque reaparece e desmascara a hipocrisia de Ângelo e faz este casar com Mariana. O Duque, perdoando a todos, ainda casa Cláudio e Julieta, enquanto espera ter Isabela para si mesmo.

E no desenrolar dessa trama, em que nenhuma personagem é inteiramente boa ou má, enxergamos a beleza e a sabedoria da poesia do “inventor do humano” (na tradução de Carlos Alberto Nunes para Edições Melhoramentos): “Que lhe perdoe o céu, como a nós todos! Uns sobem pelos crimes; outros caem pela virtude. Alguns vivem impunemente, nos vícios atolados, outros por uma falta são julgados”; “Não podemos medir nossos vizinhos pela nossa bitola; os poderosos riem das coisas santas; o que neles é espírito, não passa de disforme profanação nos outros”; “antes de a alguém castigar, deve seus erros pesar. Vergonha para quem pune pecados sem ser imune”; “Não creias impossível o que apenas improvável parece”; “Leis para todas as faltas (...): são motivo de zombaria mais que de advertência”; “Dizem que os melhores homens hão de conter sempre defeitos e que chegam a ser melhores quando alguma coisa de ruim contêm”.

Poeticamente, “Medida por Medida” discute as questões fundamentais que interligam o Direito e a Moral. E juridicamente ela explora o melhor e o pior do ser humano. Numa terra onde o vício floresce, a Justiça implacável parece ser a solução. E a assim “justificada” tirania de um só “incorruptível” (que se acha o próprio Direito) há de reparar o dano que a frouxidão tem causado. Mas aí é que surge a hipocrisia dessa Justiça absoluta aplicada pelos homens. A medida por medida, o “não julgues para não ser julgado” do famoso Sermão da Montanha, não nos é possível dar. Essa Justiça pura e absoluta, no mundo real, de paixões e fraquezas, simplesmente porque não funciona, não é a medida certa. Pelo menos não na visão do grande conhecedor da alma humana – certamente o maior de todos que, em poesia, dela tratou - que foi Shakespeare.

Uma Justiça (dos homens) moderada e não hipócrita, eis a medida de Shakespeare. A minha medida? Muitas vezes não consigo bem calibrar. A minha régua, confesso, ainda é humanamente falha. E a tua medida/régua, leitor sabido, sabes qual e como é?

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