sábado, 16 de novembro de 2013

Réquiem para o Patrimônio Histórico do Município de João Pessoa


  
Fundada pelos portugueses no dia 5 de agosto de 1585 com o nome de “Vila Real de Nossa Senhora das Neves”, João Pessoa é uma das cidades mais antigas do país e do continente. A cidade que nasceu em uma colina às margens do Rio Sanhauá foi habitada primeiramente pelos índios tapuias, depois pelos tupis e, finalmente, pelos europeus e seus descendentes.

Ao longo dos anos, o lugar foi palco de batalhas e revoluções, e por várias vezes mudou de nome. As disputas entre holandeses e portugueses, as perseguições às populações indígenas e a Revolução de 1930 foram alguns dos acontecimentos históricos ocorridos aqui. Durante a União Ibérica se chamou de Filipéia de Nossa Senhora das Neves, durante o domínio holandês de Frederica (Frederikstad), Cidade da Parahyba e, por fim, João Pessoa.

É por conta disso que o Município conta com um rico patrimônio histórico, que é referência nacional. São casarões, igrejas e sobrados de grande valor artístico, histórico e paisagístico, que refletem as influências arquitetônicas de diversos estilos e períodos. Com efeito, é possível arrolar um significativo número de construções que compuseram e ainda compõem a estética local, a exemplo da Capela do Engenho da Graça, da Casa da Pólvora, da Fonte do Tambiá, do Hotel Globo, da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, da Igreja de Nossa Senhora da Guia, da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco e do Teatro Santa Rosa. Não foi por outro motivo que o Centro Histórico foi reconhecido como patrimônio nacional pelo IPHAN, que o inscreveu no Livro do Tombo Histórico e Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico.

A despeito disso, tal patrimônio histórico não vem recebendo os cuidados necessários por parte do Poder Público e da sociedade civil, que parecem não compreender a importância desses bens não apenas para a afirmação da identidade cultural, mas para a atividade turística. De fato, não é preciso ser especialista no assunto para perceber o péssimo estado de conservação em que se encontra boa parte dessas edificações. São paredes ou prédios inteiros que caem, muitas vezes colocando em risco a população e outros imóveis, depois de anos e anos de abandono.

Foi a esse propósito que o historiador pernambucano Clênio Sierra de Alcântara postou faz alguns meses no seu blog intitulado “A cidade e a História” o texto “Do fausto às ruínas: um passeio pela Rua das Trincheiras” (http://acidadeeahistoria.blogspot.com.br/2013/05/do-fausto-as-ruinas-um-passeio-pela-rua.html). É claro que não é apenas nessa rua que isso ocorre, posto que, infelizmente, na capital paraibana o descaso é a regra e a conservação a exceção. Contudo, nessa postagem o historiador denunciou o descaso do Poder Público com o patrimônio histórico apenas a partir de uma rua, disponibilizando inclusive diversas fotografias de imóveis históricos em ruínas, o que é bastante ilustrativo quanto ao contexto geral dos bens culturais locais.

A Curadoria do Patrimônio Cultural do Ministério Público da Paraíba interpôs a Ação Civil Pública n. 0013845-68.2013.815.2001 com o objetivo de fazer com que o Estado da Paraíba e o IPHAEP – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba façam o inventário dos bens patrimônio cultural que deve ser preservado em razão de seu valor histórico, artístico, arquitetônico, paisagístico e cultural. Atualmente em tramitação na 4ª Vara da Fazenda da Comarca de João Pessoa, a ação visa também obrigar os réus a averbar no Cartório de Registro de Imóveis o tombamento dos imóveis e a pagar indenização por danos morais coletivos. De acordo com o Dr. João Geraldo Barbosa, um dos Promotores de Justiça responsáveis pelo caso, nem o Estado nem o IPHAEP sabem dizer com precisão quais são os bens inventariados, registrados ou tombados por eles mesmos, nem tampouco o seu estado de conservação.

Impende dizer que a responsabilidade pela conservação do patrimônio histórico diz respeito, primeiramente, ao proprietário, que deverá arcar sozinho com os custos de manutenção. Contudo, caso o mesmo não tenha comprovadamente condições de fazê-lo, valerá a responsabilidade subsidiária da Administração Pública, de forma que o órgão ou ente responsável pagará a conta, nos termos do que estabelece o art. 19 do Decreto-Lei n. 25/37, o qual dispõe sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Isso significa que os órgãos responsáveis pela gestão do patrimônio cultural podem atuar fazendo uso dos instrumentos de comando e controle, a exemplo da fiscalização, do embargo e da multa administrativa, ou cuidando diretamente da conservação desses bens.

A concessão e a manutenção da decisão judicial liminar favorável ao Ministério Publico na ação citada corroboram a compreensão de que o Estado e o IPHAEP fracassaram na honrosa missão de proteger o patrimônio cultural, cujo fundamento jurídico se encontra nos arts. 215 e 216 da Constituição Federal. Com efeito, a raiz do problema não é a falta de compromisso ou a incompetência dos servidores dessas instituições, na maioria das vezes verdadeiros “Dom Quixotes” da identidade cultural nacional. Imperioso reconhecer que os órgãos responsáveis pelo patrimônio cultural não dispõem da mínima estrutura em matéria de recursos humanos e financeiros, constituindo-se nos primos mais pobres da pobre Administração Pública brasileira. Se é verdade que de todos direitos difusos e coletivos nenhum é tão invisível quanto o patrimônio cultural, é importante destacar que em João Pessoa a situação é ainda mais grave, pois aqui o Poder Judiciário praticamente decretou a falência deles, pelo menos em âmbito estadual.

A curto prazo, a única solução seria fazer com que os órgãos de controle ambiental façam a sua parte, fiscalizando e, quando necessário, impondo embargos e multas por lesões ao patrimônio cultural, já que eles também são responsáveis por isso, de acordo com os arts. 62, 63, 64 e 65 da Lei n. 9.605/98 e os arts. 72, 73, 74 e 75 do Decreto n. 6.514/2008. É claro que esses órgãos também enfrentam dificuldades orçamentárias, mas a sua efetiva inserção na gestão do patrimônio cultural parece ser a única saída a curto prazo. De mais a mais, a legislação ambiental é mais efetiva na proteção do meio ambiente do que a legislação específica do patrimônio cultural, daí doutrinadores como José Eduardo Ramos Rodrigues defenderem a introdução dos órgãos responsáveis pela gestão do patrimônio cultural no SISNAMA. No entanto, a prática também demonstra que os órgãos de controle ambiental, seja em âmbito federal, estadual ou municipal, não se sentem identificados com essa missão, e simplesmente ignoram o fato de que o patrimônio cultural faz parte do objeto de atuação do Direito Ambiental.

Certamente contribui para esse verdadeiro estado geral de omissão o fato de haver outro órgão competente para a gestão do patrimônio cultural, pois é corriqueiro a competência administrativa comum gerar conflitos negativos de competência. Talvez por conta disso os nossos filhos e netos não cheguem a conhecer o patrimônio histórico pessoense na sua integralidade, visto que boa parte dele está literalmente tombando. Quase toda semana uma parede de um prédio histórico cai, e o proprietário do imóvel acaba se aproveitando disso para vender o terreno ou utilizá-lo como estacionamento, tamanha é a força com que o mercado imobiliário engole a identidade e a memória de um povo. Enquanto isso, nada mais resta a fazer senão rezar e rezar para que a Força Divina conserve tais bens, face o insucesso dos seres humanos nessa relevante empreitada.



(Cabedelo/PB, novembro de 2013)

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