terça-feira, 15 de novembro de 2011

Papéis Velhos


Hoje à tarde meu pai me entregou uma pasta velha cheia de papéis amarelados. Como são coisas suas cabe a você guardar ou jogar fora, disse-me ele. Com uma sensação de estranheza e surpresa, eu passei a revirar aqueles escritos e me deparei com alguns pequenos tesouros pessoais.

Foi o caso do livro “Canções de um tempo esquecido”, que o poeta André de Sena me dedicou no dia 14 de outubro de 2002. Foi o caso do poema “Amar é sonho”, que o poeta Evaldo Motta me presenteou no dia 18 de dezembro de 1990. Foi o caso do conto “Ezequiel na cova dos leões”, que o amigo Vinícius Campos me pediu para ler. Foi o caso do conto “Relato de um louco”, que o amigo Fábio Moreira de Queiroga também me pediu para ler.

A propósito, faz tempo não tenho contato com esses amigos, com exceção de Vinícius com quem me comunico pela Internet, já que ele há anos se mudou para o Canadá. Como uma metáfora dos tempos modernos, a tecnologia traz para perto o amigo distante, ao passo que os compromissos diários não facilitam o encontro com os que moram na mesma cidade ou no mesmo Estado.

Eu também achei o meu cadastro de usuário do LAERLE – Laboratório de Apoio ao Ensino de Redação e Leitura do Curso de Graduação em Letras da UFPB Campus II, atual Campus I da UFCG. Confesso que quase não reconheci o rosto da fotografia 3x4, cuja magreza refletia a dieta vegetariana da qual fui adepto durante alguns anos.

Havia um exemplar do pasquim “O coruja”, que era organizado pelo Centro Acadêmico do Curso de Graduação em Letras, contendo textos dos professores Aloísio Dantas, Antônio Morais de Carvalho, José Edílson de Amorim, José Mário da Silva, Luiz Francisco Dias e Maria Auxiliadora Bezerra – todos verdadeiros mestres do ensino da Lingüística e da literatura. Na publicação havia ainda escritos dos alunos, incluindo o seguinte poema de minha autoria do qual eu não mais recordava:

Para Carolina

pelas nossas mãos caminham os sonhos acalentados
a alegria que o olhar desfila
os compartilhados momentos
a lua cheia
a primavera
as ansiedades ensaiadas, o beijo
e a cor violeta de que se pinta o horizonte
em dominicais crespúsculos


Eu encontrei vários poemas da autoria de Flávia Fernando, hoje renomada psiquiatra em João Pessoa. Minha amiga escreve tão bem que será mesmo um desperdício caso ela não volte a se dedicar à literatura.

Havia uma matéria comemorativa dos cem anos de Jorge Luis Borges publicada em agosto de 1999 na Revista Cult, contendo inclusive um excelente ensaio de João Alexandre Barbosa. Encontrei um poema atribuído erroneamente a Borges chamado “Instantes” e o interessante conto “Borgeanas” que Luis Fernando Veríssimo escreveu em sua homenagem, o qual imediatamente reli.

Eu descobri uma lista de nomes de amigos, a qual continha a data de aniversário e o número de seus respectivos telefones. Também não tenho mais contato com a maioria, e de alguns não recebo notícias há mais de dez anos. Inclusive, não reconheci dois nomes dessa relação.

Entre outras inúmeras coisas desse verdadeiro baú de antiguidades, é possível destacar um texto sobre o pantum, uma modalidade de poema estrófico de forma fixa oriunda da Malásia. O poema “A meditação do rio Pecos” de Hazel Henderson, que me foi entregue pelo amigo e hoje monge zen-budista Luis Teodoro. O poema “Bar” de José Edmilson Rodrigues, que também escreveu a mão uma pequena carta com frases de escritores e trechos de poemas de sua preferência. O poema “Uma arte” de Elizabeth Bishop em versão bilíngüe, cuja obra me foi apresentada pela tradutora Themira Brito. A crônica fantástica “A presença transparente” do artista plástico Josafá de Orós. A crônica “Pescaria” de Carlos Romero, um dos grandes mestres do gênero no país. A crônica “Ter ou não ter namorado? Eis a questão” de Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileiro. O artigo “Canção de amor ao povo e à liberdade”, do poeta recifense Edmir Domingues. Os originais do prefácio que o poeta cearense Majela Colares escreveu para o meu livro de poesia “Cemitério de deuses”, e um ensaio do crítico literário José Mário da Silva sobre o mesmo. Um ensaio de Hildeberto Barbosa Filho a respeito do livro “O soldador de palavras”, do poeta Majela Colares. E o texto de Roberto Drummond sobre uma das melhores vozes da música popular brasileira,cujo começo era o seguinte:

Comunicado ao mundo: Deus existe. Quem duvidar, que ouça Milton Nascimento cantar!

É claro que eu concordo com o autor da “Hilda furação”, pois sempre fui um grande fã de Bituca. Contudo, outros achados menos literários também me chamaram a atenção, a exemplo de uma carta por meio da qual um irmão me autorizava a receber honorários advocatícios em seu lugar. Foi o caso também do e-mail que Nelson Neraiel me enviou tirando dúvidas a respeito dos passes mágicos, exercícios energéticos de origem tolteca que o escritor Carlos Castanheda teria ensinado. Foi também o caso da apostila de pára-quedismo que fui obrigado a estudar durante o curso com o instrutor Tony Guedes, a que tive de me submeter para poder fazer o salto sozinho, o que ocorreria algumas semanas depois em Caruarú.

Provavelmente sem qualquer intenção, meu pai me proporcionou uma verdadeira arqueologia interior ao entregar a mim esses papéis amarelados e com cheiro de mofo. Além de reencontrar amigos, colegas e conhecidos, e de me reconciliar com autores, convivências, gostos, lugares, sentimentos e textos, eu descobri que o passado é tão mágico e mutável quanto o futuro: tais lembranças certamente me encantaram muito mais agora do que em seu tempo, pois a memória poética transforma incessantemente o passado mesmo que nele não pensemos. Antônio Morais de Carvalho, meu ex-professor de Teoria da Poesia, costuma dizer que todo texto de memória encerrava algum tipo de chantagem, na medida em que o leitor se sente intimidado para criticar. No meu caso, passei o feriado nacional da proclamação da República entre lembranças e papéis velhos, simplesmente imerso em um oceano colorido de saudades.



Campina Grande/PB, 15 de novembro de 2011

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