sábado, 15 de janeiro de 2011

Os Tempos da Faculdade de Direito e a Literatura


Um amigo me perguntou se eu sentia saudades dos tempos da Faculdade de Direito, da Universidade Estadual da Paraíba. Antes que eu respondesse, ele começou a falar que essa foi a melhor época da sua vida, pois a graduação lhe abriu as portas de um novo mundo. Nessa fase ele viveu amores intensos, fez amizades que até hoje cultiva e se envolveu com política estudantil, tendo tomado consciência de si mesmo como homem e como cidadão.

Somos colegas de infância e fomos contemporâneos na faculdade, embora eu fosse um ano mais adiantado. Além disso, compartilhávamos um contexto econômico e social semelhante, tínhamos vários amigos em comum e vivenciávamos as mesmas idéias políticas. Seria natural, portanto, que eu falasse desse período com igual felicidade.

Como todo ser humano é um pequeno universo, lição que Sócrates já professava na Grécia antiga, é natural que as pessoas tenham impressões e memórias diferentes sobre os mesmos fatos. Com efeito, antes de o acontecimento ser o acontecimento, ele é a leitura que se faz dele – e essa leitura sempre será diferente porque cada um traz em si um referencial singular capaz de filtrar a realidade, o qual é composto pelas particularidades dos sujeitos.

No caso, certamente a minha visão sobre aquela época era distinta da do meu amigo, pois meus olhos não brilharam com intensidade quando passei a falar a respeito do assunto. É claro que eu tenho boas lembranças dos tempos da Faculdade de Direito, visto que também vivi amores, fiz amizades que até hoje cultivo e tomei mais consciência de mim mesmo como homem e como cidadão.

Por exemplo, eu me lembro das aulas de professores magistrais, a exemplo de Padre Maia, Jackson Duarte, José Tavares, Mércia Amorim, Railda Saraiva e Vital do Rêgo. Eu me lembro dos livros didáticos adotados em cada disciplina e das interessantes discussões em sala de aula. Eu me lembro das conversas descontraídas nos corredores e no pátio do vetusto prédio onde um dia funcionara o colégio Anita Cabral. Em me lembro dos flertes e paqueras no centro acadêmico, na lanchonete de Jadi e na Livraria de Loiola. Eu me lembro dos funcionários, quase sempre dispostos e gentis. O tempo consegue colorir até as imagens em branco e preto, pois eu me lembro com satisfação da biblioteca desatualizada, das carteiras quebradas, dos horários vagos e dos tetos caídos.

É evidente que, de alguma forma, eu sinto saudade de tudo isso. No entanto, o que mais sinto falta da época da faculdade é certamente o tempo que eu tinha disponível para ler, e nessa fase eu lia intensamente. Nessa fase eu li e reli obras de Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Gabriel García Marquéz, Jorge Luis Borges, José Saramago, Júlio Cortázar, Machado de Assis, Mário Vargas Llosa, Milan Kundera, Murilo Rubião, Nelson Rodrigues e Rubem Fonsêca. Mergulhei no cronicário de Carlos Heitor Cony, Carlos Romero, Edmundo Gaudêncio, Luis Fernando Veríssimo, Mário Prata, Paulo Mendes Campos, Robério Maracajá, Rubem Alves e Rubem Braga. E me encantei com a poesia de Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José Antônio Assunção, José Paulo Paes, Majela Colares, Mário Quintana e Manuel Bandeira. Eram instantes inesquecíveis e únicos, em que eu entregava por completo ao universo fantástico da literatura.

Confesso que me dedicava pouco ao Direito, estudando o suficiente para ser aprovado por média nas disciplinas. Realmente, não me parecia razoável trocar livros como “A metamorfose”, “A insustentável leveza do ser” ou “Morte e vida Severina” por algum manual de Direito Administrativo, de Direito Civil, de Direito Penal ou de Medicina Legal, a não ser pelo único fato de que precisaria me estabelecer profissionalmente como advogado ou ser aprovado em concurso público. Todavia, isso estava longe de ser uma preocupação para mim, provavelmente em razão da minha pouca idade e da relativa boa condição econômica dos meus pais à época.

Também contribuía para isso a excessiva formalidade do meio jurídico e a hipercorreção dos bacharéis, o que inegavelmente me entediava. Por outro lado, a timidez fazia com que o meu envolvimento com as atividades acadêmicas fosse discreto, exatamente ao contrário do meu amigo. Independentemente de qualquer coisa, a verdade é que o meio jurídico apresentado pelos meus professores não era tão sedutor quanto o universo literário, e por isso cheguei inclusive a pensar seriamente em seguir outra carreira.

Hoje sou advogado militante e professor universitário e minha rotina profissional é bastante atribulada, de maneira que quase sempre tenho trabalho a fazer no que seria o meu tempo livre. São artigos, contratos, petições e projetos que exigem uma constante atualização nas leituras jurídicas, seja no que diz respeito à doutrina, à jurisprudência ou à legislação. Às vezes me sinto um operário e não um operador do Direito, tamanhas são as atribuições e responsabilidades.

Nesta virada de ano, aproveitei parte do recesso judiciário para colocar em dia algumas leituras, a exemplo de “Brasil: uma história” de Eduardo Bueno, “1822” de Laurentino Gomes e “O seminarista” de Rubem Fonsêca. Ocorre que o tempo passa depressa, e cá estou novamente às voltas com a advocacia, o magistério e a tese de doutorado, de maneira que os meus autores e livros prediletos tornarão a dormitar nas estantes do apartamento. Eu tento me confortar, dizendo para mim mesmo que nas próximas férias terei maior disponibilidade, ou que reservarei um dia de semana somente para a leitura.

Porém, tenho medo de que o portal da torre de marfim onde eu possa ler a vontade se abra apenas com a distante e improvável aposentadoria, tão improvável em virtude das reformas previdenciárias propostas e das vicissitudes da vida. Portanto, minha maior saudade dos tempos da faculdade é mesmo o tempo em que eu não estava na faculdade, porque estava lendo em casa e podia ler tudo o que quisesse. Pelo visto, assistia razão ao filósofo espanhol Ortega y Gasset quando escreveu que “o homem é o homem e suas circunstâncias”.


(Cabedelo/PB, 13 de janeiro de 2011)

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